Quem nunca ouviu as modas-de-viola “Boi Soberano”,
“Ferreirinha”, “O Milagre da Vela” e tantas que enfocam nossa encantada
união com o sobrenatural? Aludem a acontecimentos que nos asseguram de
que o existir não finda neste mundo. E, no subconsciente, insinuam o
cruzamento duma linha horizontal (a vida terrena) com outra vertical a
nos apontar as veredas do além.
“Boi Soberano”, de Carreirinho, é a singular história
dum bicho medonho que “nas guampa é leviano”. Num vilarejo (Barretos),
com o estouro da boiada, uma criança cai indefesa no meio da rua. No
pandemônio, “o Soberano parô, em cima ficô bufando, protegendo [-a] com
os chifre, dos boi que vinha passando”. No jogo de imagens, fala sobre a
força dos mistérios e das tramas ocultas no inexplicável.
Muitas modas caipiras exprimem a mediação do caboclo
com o além. Exaltam personagens (humanos ou não) que se revelam como
encarnações divinas ou avatares que, de tempos em tempos, vêm à terra
pra nos alembrar dos caminhos do bem e a salvação do mundo. Assim, o
dueto dos cantadores, como num rito litúrgico, semelha ao que apontou o
antropólogo Roberto DaMatta em tantos estudos: o cantar religioso
enfeixa uma forma solene de fé e súplica em que as vozes aglomeradas se
unem para alcançar mais fortemente os santos e divindades.
“Ferreirinha” é um conto versejado em que se diluem
as distâncias entre nossa finitude e o sem-fim. Remoça o mito de que
carregamos conosco as auras dos antepassados. Na letra, um boiadeiro que
trouxera o amigo morto amarrado em seu corpo, confessa: “Quando alembro
essa passage, franqueza, me dá arrepio, parece que a friage das costa
inda não saiu”. Na “resposta” a essa música, o invisível dialoga com a
vida terrena: “Não me esqueci de você, foi meu melhor companheiro, suas
costa, meu amigo, inda deve estar gelada, do dia que me levô pra
derradeira morada” (“A Alma de Ferreirinha”, de Zilo e J. Mineiro).
Em “O Milagre da Vela”, uma viúva muda-se para a
cidade atraída pelas luzes do progresso. Rompendo a rigidez dos códigos
morais do ambiente rural, vai morar num sobrado. A ânsia por “subir na
vida” realiza-se no plano material que a faz esquecer-se do outrora.
Numa noite, é alertada em sonho sobre o fogo no quarto vizinho: “Arrombô
a porta e entrô, num gesto desesperado. [...] Meus filhos pra quê essa
vela, se a força não tem faltado? Minha mãe, 15 de agosto, nós estamos
bem lembrado, que hoje completa um ano que papai foi sepultado”.
Essas relíquias culturais de ancestral sabedoria,
filtradas pelo consenso coletivo, trazem a lição de que se devem
respeitar os valores de outrora como alicerces da cultura e estabilidade
do ser na coesão social. Alertam que os humanos e a natureza são
inseparáveis e em consonância com a misteriosa sinfonia do universo.
Mesmo lanhadas de pó e no modo elementar em se apalavreiam, ou tidas
como arcaicas pelo pragmatismo de agora, têm muito a nos ensinar. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |