ROMILDO SANT'ANNA

País dos bruzundangas

“Os Bruzundangas” (1923) é preciosa obra do escritor e jornalista Lima Barreto. Lastima uma nação imaginária ou trocada de nome. Com humor lacerante, seus capítulos enfocam a Constituição, as transações obscuras e tradição das propinas no serviço público, a política e eleições em Bruzundanga. Apontam os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, as sanguessugas do erário, a desigualdade social, saúde e educação tratadas com desapreço, enfim, os vícios duma sociedade enfermiça. Tem-se impressão de que o autor não só alegoriza seu tempo, mas analisa as estruturas dum país nos descaminhos de si.

Com estilo próximo da caricatura e da sátira, Lima Barreto, descendente de escravos, mesmo tendo morrido jovem (e paupérrimo), consagra-se como um dos nossos mais requintados artistas da palavra e perceptivos de nossa cultura. No submundo do poder da alegorizada sesmaria prosperam os oportunistas, apaniguados, corruptos, retrógrados e escravocratas de quatro costados. 

Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo; tampouco lhe amenizam os problemas. Cuidam de enriquecer e amparar seus descendentes e colaterais. Escreve: não há homem influente que não tenha parentes, amigos e partidários ganhando altos salários em repartições; não há doutores da lei e deputados que não se vejam no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo tesouro da república.  Em paralelo, a população é aviltada pela vexação dos impostos; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem de vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e suspeitas origens.

Ao presidente, que deve ser um parvo deslumbrado, chamam-no “Mandachuva”; ao poder judiciário, “Chicana”. A Carta Magna, redigida por espertos (e não expertos), preceitua um providencial adendo: “toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação”.  Todos os profissionais da política almejam aproximação com os eleitos porque estes lhe garantem privilégios. À imensa plebe, ignorante e manipulada, pra que não fique gritando “viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo”, instituiu-se a “Guarda do Entusiasmo”, formada por dez mil indicados sem concurso, uniformizados “de povo”, com função de disciplinar as aclamações e vivas da multidão.

Eis Bruzundanga em seus códices sociopolíticos e no atraso visceral de seus caudilhos e agentes no poder. Nos valos da incúria, assim germinam as toscas relações entre os interesses privados, o Estado e a sociedade. Falamos dum livro publicado há 87 anos, e que nos propicia a acareação duma nação pisando em falso, e assediada pela ironia de que a continuação representa a mudança. Triste país, ó quão dessemelhante!

 

Romildo Sant’Anna, livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de Letras e Cultura

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.