“Bastardos
Inglórios” talvez não seja o melhor filme de Quentin Tarantino. Porém –
e outra vez talvez – é o mais provocante. Instiga o nosso lado
vingativo, sem dramas de consciência e sobressaltos morais. O que
pensamos (mais, o que faríamos) em reação aos horrores do Holocausto? O
cineasta, ao tocar no mal implícito, desperta em nós o ímpeto tardio e
perverso de vermos os názis sofrerem pelos crimes cometidos. E,
literalmente, os escalpela. No através, empurra o espelho em nossa cara:
todos são bandidos e mocinhos, depende das conveniências.
Constrói a obra
(como fizera em “Kill Bill”) à base de manejos retóricos em que filmes
que já vimos, em paralelo com a vida real, parecem consolidar a ideia de
que somos assim mesmo: dum lado angélicos, doutro, nefastos. Assim,
avultam-se protagonistas (simulacros de nós), não propriamente
“bastardos inglórios”, mas bastardos de glórias, órfãos do amor.
O personagem
central Aldo [o Apache] Rayne (Brad Pitt) caracteriza-se pela aparência
facial de Dom Vito Corleone, entonação afetada de filmes dublados e o
andar torpe de Robert Duvall em “Apocalipse Now”. Com judeu-americanos,
vão à França ocupada para exibir “evidências da nossa crueldade”. Cada
homem sob o meu comando – conclama o Apache – me deve 100 escalpos
nazistas! Carregam metralhadoras, facas e tacos de beisebol. Numa cena,
ante um inimigo ajoelhado, Aldo escarnece: “Assistir ao Donny [o Urso
Judeu] golpear nazistas é quase igual ir ao cinema!”. Olha aí, vida e
cinema!
Parodia gêneros
e estilos; entremeiam-se citações, caricaturas e clichês. Num fluxo
contínuo de cenas conhecidas, amarram-se fitas de gângsteres, o charme
retrô de filmes como “Casablanca” – o fracasso do amor numa Paris
invadida –, faroestes de John Ford (“Rastros de Ódio”), Henry Hathaway
(“Bravura Indômita”) e Howard Hawks (“Onde Começa o Inferno”), e o
estilo rude dos “westerns spaghetti” de Sérgio Leone.
Referências às
trilhas de Ennio Morricone são nítidas, nos andamentos épicos dos
bangue-bangues italianos e nos bordões dramáticos de “Os Intocáveis”, de
Brian de Palma. Há alusões a missões guerrilheiras como em “Os Doze
Condenados” e “Os Canhões de Navarone”. E, no enfim, a ação conflui num
prédio de cinema, onde o estafe nazista se junta para assistir a um
filme de Joseph Goebbels (o Ministro da Propaganda de Hitler e autor da
frase comum na política: “Uma mentira repetida muitas vezes
torna-se verdade.”). Ficção e realidade se mesclam.
“Bastardos” é depuração da memória
cinematográfica, do humor sinistro e temas mordentes. Da costura do
velho busca-se o novo, e que não se cansa de flertar com aficionados de
cinema. Cinema estadunidense, diga-se, para o qual o acúmulo de meios
pra se obter violência é marca registrada. E de que Tarantino sorri e vê
criticamente. E dela se apropria e nos faz pensar. Outro concorrente ao
Oscar foi “Guerra ao Terror”, de
Kathryn Bigelow.
Violência em close.
Romildo Sant’Anna, livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de Letras e Cultura |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |