Um defeito persistente no cronista é
enveredar-se por assuntos que o intrigam, na esperança de que o leitor
também se intrigue. A revista “Pesquisa” da Fapesp, edição de outubro,
traz o artigo “A Cor que Invadiu o Sertão” sobre os bandos armados na
caatinga nordestina, de fins do século 18 a meados do 20. Que
bandoleiros seriam aqueles com tantas armas e badulaques colados à pele,
semelhantes a bois de canga, daí o nome “cangaço”? Diferentes do
banditismo comum, não almejavam à ocultação; antes, queriam ser vistos e
admirados no carnavalismo ostensivo das cores e brilhos.
Os cangaceiros primeiro foram capangas de coronéis,
que deles se utilizavam em perseguição aos indígenas, vinganças
familiares e desforra aos inimigos. Após, como poder paralelo,
rivalizaram com os donos da terra e os ameaçaram. Pari passu,
enfrentavam os meganhas do governo (os “macacos”) inclinados à desfeita
aos miseráveis. Daí, além da sedução dos adornos, eram acoitados pela
plebe numa relação de medo e proteção, desagravo e um bizarro senso de
justiça. Entretanto, o cangaço visava ao enriquecimento próprio e,
imitando os coronéis, distribuía migalhas aos deserdados. Eis um quadro
social tingido de estranhas éticas e estéticas!
O que legitima entre os cangaceiros e no imaginário
coletivo – indaga o cronista – tamanha esquisitice à contramão do
machismo nacional? Lampião, o Rei do Cangaço, filho de remediada
família, ele mesmo costurava seus trajes, dedicava-se aos bordados e
apliques, tricôs e adereços de uso pessoal e de alguns cabras achegados.
Ostentando “luxo”, aformoseava-se com duas arrobas de enfeites, afora as
armas brancas e explosivas. Só no sombreiro, com alta aba frontal em
meia-lua, trazia inúmeras peças entre moedas de ouro, amuletos, medalhas
e chamativas galas.
Virgulino Ferreira e seus ornatos de espelho, rifles
à tiracolo e anchos punhais de prata, insígnias, cantis policromados,
bornais em cores vivas, correias de balas traspassadas no peito e lenços
multicores ao pescoço; Lampião glorificado em prosa e cantorias,
personagem do Ciclo do Cangaço no cinema atualizaria longínquos faraós
na sequidão baça doutros desertos? Reviveu, num ermo dos sonhos,
medievais cavaleiros andantes? Foi encarnação do realismo mágico na
literatura, do delírio psicodélico nas estampas e fitas surreais?
Se criaturas como Maria Bonita, companheira de
Virgulino, com chapéus de feltro e lenços na cabeça eram paraíbas
masculinas, “muié macho, sim, senhor”, foi nosso hostil e envaidecido
salteador um “home fêmea”, um Diadorim às avessas no Grande Sertão? O
casal anteciparia os cultivares híbridos dos campos de agora? Nos leitos
da história, são virgulinhas que destoam no contexto e fustigam o juízo
crítico. Ou elas mesmas constroem seus contextos na senda inelutável
desta gesta: nossa vida, viva gente. Eia, pois, o pavio instigante que
alumia o tempo com as cores da intriga.
Romildo Sant’Anna, livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de Letras e Cultura. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |