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Esgueirada por venezianas |
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Era uma
rosa largada no sofá, gélida e branquinha. A morte fez-lhe a visita na
hora do show da vida. Vestia o algodãozinho puído estampado de florinhas
apagadas que pareciam do avesso. Olhar opaco, sorriso acanhado, foi
casada com o mais febril dos pintores. Vivia assuntando o palavrório do
marido, esgueirada por venezianas, como quem mira chispas dum canavial
em fogo. |
Retrato de Dona Rosinha.
Óleo sobre tela, 89 x 69 cm, 1957
(Museu de Arte Contemporânea - USP
- São Paulo)
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.......Em
lampejos de recordações, via-se quando, inda mocinha, saiu da roça
espantada pela parentela dum rabo-de-saia que ele tinha. Seriam sonhos?
Ele, ancho de si, de braços com a vida; ela, com dois filhos de través
na cintura e o outro a puxar-lhe o vestido. |
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Meu
show. Sobre a rosa, uma cruz: Saudosa!
(Pra
mim, qual o quê, cê já morreu.)
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Em
ausência do chefe, ouvia seu rompante na vitrola: "Eu disse à dona
Rosinha que ia pintar três quadros pra exposição. Ela respondeu que eu
não era artista, nem sabia nada e meu lugar era na roça com a enxada na
mão". Pulsava-lhe no peito o desfrute do que nem podia sonhar: "Os
artistas são queridos, e quando aparece uma mulher bonita e me beija, eu
beijo também. Se não beija, não beijo. Minha mulher se esquece de que
sou dela como marido, mas sou do mundo e vivo de acordo com as regras".
Clarinha, transparente. Certo dia o galerista aconselhou-a de pintar
imitando o marido. Prometeu exposição na capital e até trouxe o botão de
rosa enrolado em celofane. Põe aspirina na água, dura mais! - deu de
conselho. De tão fácil imitação, era pouco mais que nada. Campeou na
memória jardins onde nunca estivera, postais que ninguém lhe mandara. E,
bulindo à surdina em pincéis rejeitados, coloriu tímidas telinhas. Por
primeira vez sentira o prazer do cheiro de tinta fresca, só sua,
ardendo-lhe nos olhos! |
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Esgueirada, à porta
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.........Mas o onipresente marido farejou-lhe a façanha. Só se
amoitou em sonso para dar-lhe outra lição. Ela nem percebeu diferença na
indiferença. Seria uma pintora com retratos no jornal, receberia visitas
adoráveis e - quem sabe? - dispensaria o sofá de courvin em marrom
craquelado no canto da sala. Mas, com a faca de cozinha diligente
e pisando encima dos quadros, José proclamou de veneta: "Nesta casa
basta um artista. Eu!". |
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Nesta casa, basta um artista!
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Permanecia no estofado, sentindo esfriar-lhe o colo e azularem-se
trêmulas as unhas das mãos. Pensou em desligar a TV e ir-se à cama. Mas
lhe convinha a preguiça, sem cobrança e hostilidade. Recatada, quis
ajeitar-se no vestido, mas o corpo se teimava, querendo aconchego no
berço suado, seu sofá de toda hora. Explodindo-se-lhe o peito, sentiu-se
liberta, tão real o desejo por coisa nenhuma, e nada a
explicar, tampouco qualquer tarefa a cumprir, num distúrbio sem culpa,
compromisso nem saudade.
Esvaia-se de sonhos, dos afetos em gloriosas missivas por chegar e dos
desenhos que jamais fizera senão em rascunhos da memória. Levitou
serena, estiada e peregrina por suntuosas veredas com pessoas gentis a
lhe acenarem "Oi!". E, distraída pelo brilho duma outra tela, inda
discerniu o coro de vozes a festejar aquele domingo gélido de junho:
"Olhe bem, preste atenção, nada na mão, nesta também. Nós temos mágica
para fazer. Assim é a vida, olhe pra ver... É fantástico, da idade da
pedra ao homem de plástico, o show da vida! |
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(Rosa
Soares, a mulher de José Antônio da Silva, 1915-1984) |
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |
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