Bastante se falou dum “trem caipira” a ir e vir,
cidade e distrito. Semelha uma van sobre dormentes, futurível, amiudada,
insólita, ela mesma a indagar uma antiga questão: sou ou não sou...
caipira? Mas entendo a insistência do ex-prefeito Edinho Araújo em
vê-la nos trilhos. Um trem, no imaginário coletivo, tem um quê de
fantasioso; aguça sentidos que ultrapassam aos da mera locomoção. Ao
imaginá-lo, vivenciamos uma mudança de estado, transitamos do real à
utopia. No deslizar incisivo, tal comboio empertigado corre em busca do
destino.
Tantos artistas nacionais e estrangeiros
inspiraram-se nesse meio de transporte. Manuel Bandeira, no “Trem de
Ferro”, fez de seus versos a onomatopeia dum trem em nostalgia: “Vou
depressa, vou correndo, vou na toda, que só levo pouca gente, pouca
gente, pouca gente...”. Drummond o evoca em prostrada solidão: “Trem
arquejante, cansado, a subir a Mantiqueira, também eu chego atrasado,
não encontro quem me queira” (“Amor em viagem”).
A melancolia povoa os galpões inventivos de Milton
Nascimento e Fernando Brant. Em “Ponta de Areia”, a sensação de
desconsolo e olvido: “Maria-fumaça não canta mais, para moças, flores,
janelas e quintais...”. “Encontros e despedidas” resume o ciclo da
existência: “E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem.
O trem que chega é o mesmo trem da partida. A hora do encontro é também
despedida. A plataforma desta estação é a vida desse meu lugar, é a
vida.”.
Há semelhantes composições pairando em partituras
reais e linhas férreas idealizadas. Uma maria-fumaça inda conduz
venturosos passageiros, de Tiradentes a São João Del-Rei, como se o
farol do passado alumiasse o agora. Uma das mais pungentes tocatas da
melodia nacional é “Trenzinho caipira” de Villa-Lobos (Bachianas
brasileiras n º. 2), inda mais emocionante na letra de Ferreira Gullar:
“Lá vai o trem com o menino, lá vai a vida a rodar, lá vai ciranda e
destino, pro dia novo encontrar...”.
Essa aspiração dum novo dia marcou José Antônio da
Silva, o célebre pintor rio-pretense. Ecoava em seu peito-menino o apito
da mojiana. Em 1969, localizou uma das últimas locomotivas a vapor
abandonada num pátio da antiga EFA, em Araraquara. Realizou viagens,
enviou carta ao governador que o recebeu em audiência. Pedia a doação do
“trem caipira” que, como o carro-de-bois que conseguira, mostrariam às
pessoas de depois os lombos que transportaram o Brasil de ontem. Em 73,
positivado seu intento, um chefe da cultura local sentenciou que “Rio
Preto dispensava sucatas e ferros-velhos” (tais passagens e fac-símile
da carta encontram-se em meu livro-tese “Silva: quadros e livros”).
Visionário, mas eclipsado pelo preconceito, Silva não
se rendeu à insensibilidade; antes, utilizou-se dela como o contramolde
à incitação de sua obra. Em 2009, no centenário do artista, que o atual
“trem caipira”, inda que refrigério e modernoso, faça jus a um sonho
largado num ermo distante, e que parece de todos. Sugere outra viagem: o
trem da vida a rodar. Incrementá-lo e fazê-lo vivaz é exaltar o passado
em sua graça matinal, fundo esteio do porvir. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |