Em ausência do chefe,
ouvia seu rompante na vitrola: “Eu disse à dona Rosinha que ia pintar
três quadros pra exposição. Ela respondeu que eu não era artista, nem
sabia nada e meu lugar era na roça com a enxada na mão”. Pulsava-lhe no
peito o desfrute do que nem podia sonhar: “Os artistas são queridos, e
quando aparece uma mulher bonita e me beija, eu beijo também. Se não
beija, não beijo. Minha mulher se esquece de que sou dela como marido,
mas sou do mundo e vivo de acordo com as regras”.
Clarinha, quase
transparente. Certo dia o galerista aconselhou-a pintar arremedando o
marido. Prometeu exposição na capital e até trouxe o botão de rosa
enrolado em celofane. Põe aspirina na água, dura mais! De tão fácil
imitação, era pouco mais que nada. Campeou na memória jardins onde nunca
estivera, postais que ninguém lhe mandara. E, bulindo à surdina em
pincéis rejeitados, coloriu tímidas telinhas. Por primeira vez sentira
o prazer do cheiro de tinta fresca, só sua, ardendo-lhe os olhos!
Mas o onipresente marido
farejou-lhe a façanha. Só se amoitou em sonso para dar-lhe outra
lição. Ela nem percebeu diferença na indiferença. Seria uma pintora
com retrato no jornal, receberia visitas adoráveis e – quem sabe? –
dispensaria o sofá de courvin em marrom craquelado no canto da sala.
Mas, com a faca de cozinha pisando encima dos quadros, José proclamou de
veneta: “Nesta casa basta um artista. Eu!”.
Permanecia no estofado,
sentindo esfriar-lhe o colo e azularem-se trêmulas as pontas dos dedos.
Pensou em desligar a TV e ir-se à cama. Mas lhe convinha a preguiça, sem
cobrança e hostilidade. Recatada, quis ajeitar-se no vestido, mas o
corpo se teimava, querendo aconchego no berço suado, seu sofá de toda
hora. Explodindo no peito, sentiu-se liberta, tão real o desejo por
coisa nenhuma, e nada a explicar, e nada a cumprir, num distúrbio sem
culpa nem saudade.
Esvaía-se dos sonhos, dos
afetos nas cartas que ninguém lhe escrevera e dos desenhos que jamais
fizera a não ser em rabiscos da memória. Levitou serena, estiada e
peregrina por suntuosas veredas com pessoas sorridentes a lhe dizerem “Oi!”.
E, distraída pelo brilho duma outra tela, inda discerniu o coro de vozes
a festejar aquele domingo frio de junho: “Olhe bem, preste atenção, nada
na mão, nesta também. Nós temos mágica para fazer... É fantástico, da
idade da pedra ao homem de plástico, o show da vida! (Rosa Soares, a
mulher de José A. da Silva, 1915-1984). |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |