Comemora-se o centenário de nascimento do pintor enraizado em Rio Preto
e mais famoso naïf nacional. No
Romance da minha vida,
editado pelo MAM – São Paulo, quando completava os 40 anos, assim o
artista se esboçou, com o lirismo das anunciações: “Nasceu numa manhã
cuja madrugada era coberta pela orquestra da natureza. Doze de março de
1909 e estava esse menino no mundo: José Antônio da Silva”.
Há
substancioso registro iconográfico e consistente fortuna crítica acerca
do primitivista. E muito se há que escrever sobre sua obra. Eu mesmo
apalavrei sobre os vários “silvas e personagens de si mesmo”, dependendo
da época, em meu livro
Silva:
quadros e livros - Um artista caipira.
Por
meio século como estupendo pintor (de 1946, quando foi revelado em Rio
Preto, a 1996, o ano de sua morte), Silva surpreendia pelo fulgor
imaginativo combinado com agudo instinto para a arte. Autodidata
perspicaz e ungido de poderoso talento, fez-se reconhecido no Brasil e
em vários países do mundo. Seus quadros se realçam em acervos de
importantes museus e salões de arte.
Quero
enfocar um momento decisivo para o artista, à época malvisto por
galeristas e críticos brasileiros. O ano de 1955 foi a prova dos nove em
sua carreira. Consolidando o respeito internacional, é convidado de 4
grandes exposições: a de Lissone, em Milão, a de Neuchâtel, na Suíça, a
do Carnegie Institute de Pittsburgh, EUA, e a do Ateneo de Valencia, em
Caracas. Distinguiu-se ainda no Salão Paulista de Arte Moderna e 3ª.
Bienal de São Paulo.
Se, no
princípio, as telas de Silva eram tímidas, obscuras e sufocadas,
exprimindo penúria existencial, a euforia lhe arrebata o espírito. Na
nova fase, suas cores tornam-se vívidas e sorridentes, e se lhe
acrescenta a disposição para experimentos e arrojos no trato da luz. Em
decorrência, as paisagens e seres tornam-se cada vez mais aproximados e
exuberantes. E, por influência de Van Gogh (que conhecera por estampas),
suas figuras se mesclam de riscos multicoloridos com as pontas de
pincéis.
Heresia! Sentenciaram que Silva já não era o mesmo (e deveria ser?), que
se desintegrara e sua ingenuidade fora pras cucuias. Rejeitado na 4ª.
Bienal, teve o peito encharcado em vinagre. Porém, como dizia Jorge Luís
Borges, “o bairro, quanto mais aporrinhado, mais obrigação de ser guapo!”.
Ante o revés, o artista se recompôs, sacudiu a poeira e deu volta por
cima. E realizou quadros escarnecendo do júri da Bienal paulistana.
Ganhou
espaço nos jornais, deu entrevistas caboclas e defendeu a genuína arte
brasileira. Era, para as elites integradas de então, ou aceitá-lo ou
demonstrarem-se servis às tendências forasteiras. Naquele 1955,
gestava-se o Cinema Novo com o semidocumental suburbano
Rio 40
Graus,
de Nélson Pereira dos Santos. Como censurar o Silva? Engoliram-no com
casca e tudo. E, assim, fez-se o doce bárbaro, o pintor maluco do sertão
(José Antônio da Silva, 1909 – 1996). |