ROMILDO SANT'ANNA
Santinhos

Em época de restrições aos gastos eleitorais, não a quem falte o dinheiro, mas pelo abuso do bastante, o pequeno e popular retângulo de papel apelidado “santinho” tornou-se notável instrumento de persuasão e escolha. Até recomendam que se o tenha na hora do voto, para facilitação. Conciso, contém o número, a sigla do partido ao qual pertence o candidato (letrinhas de ocasião) e, em destaque, sua foto. Esta, porém, como o revela!

No rosto se mostram os bons e maus propósitos. Nele se aderem, indisfarçadas, as vicissitudes da alma. Vez por outra, traz implícita advertência: “Decifra-me, ou te devoro”. Se não bastasse, há que se lembrar de que o semblante na foto estampada no santinho exprime a verdade “da linguagem”, não da pessoa por detrás da linguagem.

Ironia: Ninguém jamais viu diretamente o próprio rosto, senão ao espelho. Inda que com discernimento das coisas, somos para nós mesmos uma imagem refletida. No entanto, fundamente, é pela frontalidade (de fato ou na foto) que nos denotamos. Nela, a franqueza e o ardil, o angélico e o maldoso, a autenticidade e a dissimulação, as ambições desmedidas e obscuros propósitos.

Sabendo que a verdade está na cara, Da Vinci concebeu Mona Lisa, a misteriosa dama florentina. Naquela face, as intenções e seus enigmas: O tênue tremor nos cantos da boca parece irromper em choro ou sorriso; o olhar esquivo muda de posição toda vez que o encaramos. Deliberadamente ambígua por engenhoso estratagema, o artista parece nos avisar: Nas entrelinhas do retrato há um segredo a ser desvendado.

Você se lembra das fachadas dos anões do orçamento? E dos políticos venais, mensaleiros e sanguessugas? E dos magistrados vendilhões de sentenças? Reparou-lhes bem as feições? Até se lhes dispensariam os atestados de boa conduta! Outros, não têm no rosto o corte que atemoriza como o Scarface, ou a marca da traição num personagem de Borges: “Cruzava-lhe a cara uma cicatriz odienta”. A revelação pode ser mais sutil. Porém está ali, latente, ao nosso alcance, clamando por desvendá-la.

Santinho. É adulteração do nome que se dá às iconografias devocionais, propiciatórias ou em louvor a uma graça recebida. Liga-se ao sobrenatural. No catolicismo e idolatria de imagens, exprime o culto aos santos e seus atos piedosos. Na política atual dá-se o contrário, em vez da crença, a descrença, em vez de fé, desconfiança. Pegue o santinho e o tenha com cuidado. Está tudo ali em efígie, pois imagem fala. Leia-a nos detalhes fisionômicos.

Se você já viu o candidato em pessoa, compare-o com a foto. De antemão, lembre-se de que ela não registra a espontaneidade do flagrante, mas a intencionalidade da pose. Assim, é uma obstrução da verdade que, inevitavelmente, impõe a máscara. Retocada em programas de computador, é uma premeditação estética, não política. Sobretudo, suspeite do fraternizante sorriso. Em certos casos, declara um sósia malicioso, artificialmente mostrado.

O retrato, sabendo-se lê-lo, retrata. Cuidado, alguns cidadãos que simpaticamente nos procuram carregam na cara o embuste. A esses, e seus profanos santinhos, o lixo.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.