ROMILDO SANT'ANNA
Inveja

Houve menções, decerto que levianas, de que William Shakespeare nunca existiu. Sob esse nome, alguns gênios do “classicismo inglês”. Como alguém duma vida relativamente obscura conseguiria urdir tantas obras-primas em tão penetrantes viagens aos confins das paixões e tormentos da alma? Atemporais como os furores de “A Tempestade”, “Hamlet” é encarnação aflita da dúvida; “Rei Lear”, o banido e miserável; “Macbeth”, o enfeitiçado pelo poder.

“Otelo” (1603?) é um tratado sobre a inveja.  Mais que isto, vemo-la fermentar ante os olhos com os artifícios de linguagem que só o teatro propicia. Fala do “mouro de Veneza”, heróico e bondoso, que dedica incondicional amizade ao frívolo e inescrupuloso Iago. Porém esse remói à surdina: “Odeio-o!” A fábula inicia com o casamento de Otelo e Desdêmona, instante crucial para o invejoso: contempla o invejado no auge da felicidade.

Com obstinado afã de atingir Otelo, Iago aproxima-se de uns, futrica com outros, em ardilosas punhaladas. Caçoa da própria mulher, mas aproveita-se dela, torce a cravelha dos fatos para que a música se afine a seus intentos. Fingindo-se de inocente, faz alusões maliciosas sobre o caráter de Otelo, excita-lhe infundadas dúvidas sobre a esposa, acusa-a de infiel e, aos poucos, entrelaça os fios de sua rede para o sinistro desfecho.

Na peça, Iago morre e pune-se a inveja como fado ou destino. Ao modo de antigas tragédias, desencadeia-se a esconjuração do mal com seu naco de terror. Pior, muito pior é na vida real. O invejoso segue roendo-se de inveja e deixa um rastro de infâmia em os passos. Além disso, ao agredir o próximo, amesquinha-se.

Muitos se comprazem de falar mal dos outros. Não me recordo se foi Mário Quintana, mas já se disse que pessoas sábias falam sobre idéias; pessoas comuns falam sobre as coisas; pessoas medíocres falam sobre pessoas, sempre com maledicência. Entre tais infelizes, o invejoso. Não é fácil percebê-lo, pois carrega no rosto a máscara da ambigüidade e dissimulação. Mofino, alardeia-se espirituoso e brincalhão. Porém, como ensina Platão, há meios de descobri-lo, pois se revela mais em pequenos gracejos que num ano de conversa. O invejoso é um besouro da língua afiada.

A inveja, ou angústia por não ter o que é do outro, confunde-se com a ambição. Está na seiva de outros vícios capitais. Como Iago, o invejoso amiúde se insinua um grande amigo. Aproveita-se da intimidade, usufrui o que pode, imita-o. É um ressentido, pela incapacidade de ser igual. Ademais, ao encenar brilho e euforia, ofusca-se. Seus relacionamentos são frágeis, curtos, de ocasião, pois com a mesma desenvoltura com que se acerca de alguns, afasta-se de outros. Conduz-se na direção dos interesses próprios e de modo a estabelecer-se em evidência.

Nos escritores comuns, afirmam os estudiosos, as ações dos personagens revelam-lhes o caráter. No grande Shakespeare, as tinturas do caráter é que prefiguram as ações. Isto torna o drama cruelmente explícito, do primeiro ao último ato, como num cortejo funeral. Assim é a tragédia de Otelo, que amedronta e nos ensina sobre os teatros da vida.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.