Esperava Papai Noel tiritado de ansiedade. E de tanto
que a hora emperrava, o bom velhinho era inda mais bom – o cronista
dizia –, e mais mau, pecava em segredo engolindo o sacrilégio. Naqueles
idos, os presentes eram o farnel das delícias: a piorra de lata que
dormia girante, zunindo no piso encerado, o pega-varetas que desafiava a
retirá-las uma a uma sem tocar nas outras, o dominó, o tabuleiro de
damas, o jogo do mico e o quebra-cabeça. Banco imobiliário e estojo de
48 lápis que se abriam em cores, nem pensar, só na doidice dum padrinho
aluado.
Hoje, 26 de dezembro, na obscura labuta do lixeiro, o
banquete da vida coisificada. São caixas rasgadas com pressa, laços e
cordões em desleixo, papéis de embrulho e celofanes amassados teimando
em cochichar. Nos monturos de formas untadas de gordura, osso e farofa,
os despojos dos natais modernos desfilando a ressaca. Neles, o apetite
mercantil, a obrigação de presentear coisas caras e complicadas, e o
desconforto de negá-las, pois poderiam ser pagas em suaves prestações.
Lá se foram as ceias das onze, o corpo cheirando a
gessy sob roupas que serão vestidas nos domingos, a missa-do-galo no
zênite da noite e a parentela com olhares risais caçando olhares,
rogando pra que os mais velhos não morram e os mais novos permaneçam
crianças no Natal seguinte. Lá se foram as festas com a chegança dos
parentes que moram distante e voltam como aves de arribação. Dora trouxe
um saco maior de balas de coco, a família aumentou; Marilena, manjares
brancos com calda de ameixa; tia Irene a cuidar do ponche enquanto a
caçulada em sentinela estourava avelãs na dobra da porta.
Lá se foram os Natais com bilhetes sob os sapatos no
batente da janela, e não valia pedir coisas impossíveis ao Papai Noel
mais-que-perfeito e possível. Era a combinação tácita do sonho com o
palpável. E outra tia chamou o cronista em particular: “Tô adivinhando
que cê vai ganhar uma gaita com enfeites de madrepérola, a bola de
capotão, o bombeiro, uma caixa de mágica, tralha de pesca, caneca de
leite, a pistola d’água do Bat Masterson e uma peteca feito um cocar de
tão linda. Um montão, além das surpresas, por ser bom menino! Que tal
desviar um desses presentes ao niño espanhol da casa vizinha?”.
Lá se foram os dezembros em que os imigrantes nem
abriam a porta à espera de alguém e conversavam baixinho pra que não se
rissem deles. Como lhes seriam os Natais, em que idioma fariam os
pedidos? “Ah, dá ao niño o bombeiro!”, o cronista respondeu. (Que raios
seria... um bombeiro?) Viu pela veneziana a tia bater à porta em
penumbra trazendo o pacote, gesticulando coisas que suprissem o que as
palavras não diziam, ouvir o “qué Diós le pague!” e voltar se
desvencilhando da tristeza.
No dia depois do Natal, eia o muchacho puxando na rua
um caminhão vermelho de madeira, brilhoso, esplêndido, e pneus que
pareciam de verdade! O cronista feriu-o com a arma do Bat Masterson.
Inveja? Mas deveriam ser amigos. Ano que vem – quem sabe? – pediria ao
niño que escrevera em castelhano seu bilhete de Natal: “Bom velhinho,
inda mais bom, quero também um bombeiro!”. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |