Só não lhe fizéramos o sinal-da-cruz ao passarmos por ele, em gesto de esconjuro, porque o estropício que dera aos carrascos não fizera inda seus efeitos.
Complicado cálculo de proporções geométricas ou engenhosa concepção do desenho? Não. Só o encontro elementar de duas retas, traspasse de coluna e viga pregadas em rústica madeira. Há dois milênios a invocamos para afugentar os malefícios deste e doutro mundo, benzemo-nos, fincamo-la nos sepulcros, à beira de estradas e precipícios, ou nos servimos dela como amuleto ao peito no fechamento do corpo, ou nas paredes da casa em chamariz do bem.
A cruz, com Cristo dependurado, é a visão aérea da descensão dos pés ao solo, a cabeça nas alturas e, no centro, o comovido coração. Sua imagem não exprime a confluência dos opostos, mas junção do vertical e horizontal em nossas vidas, o celestial e o terreno, o infinito e a finitude, o sagrado e o profano, o paraíso incorpóreo e a existência pulsante. Denotando o fim, conota o início, a árvore da vida desfolhada no silêncio da noite, mas que assegura a aurora e renascer. Assim, não há forma plástica ou engenho visual que mais nos simbolizem no tempo, no sonho e nos fatos.
Pela cruz, o sobrenatural nos tangencia nas dimensões da inocência e da culpa. As coisas mais triviais se envolvem em mistérios, basta o nosso enlace com ela. Chico Buarque constata o milagre em seu país pobre e injusto, alumiado pelo Cruzeiro do Sul: “a novidade que tem no Brejo da Cruz é a criançada se alimentar de luz”.
Ela é testemunha fiel dos solenes juramentos. Marino Pinto e J. Gonçalves, o Zé da Zilda, compuseram e o entoamos há muitos decênios: “Aos pés da santa cruz você se ajoelhou e em nome de Jesus um grande amor você jurou. Jurou, mas não cumpriu, fingiu e me enganou, pra mim você mentiu, pra Deus você pecou.” E Alfredo Viana, o Pixinguinha, num barroco oásis de palavras, exprime o amor entre dois seres: “o teu coração junto ao meu lanceado, pregado e crucificado sobre a rósea cruz do arfante peito teu”.
Enunciando estranhos sentimentos, Bosco e Aldir Blanc exclamariam: “Para trás ficou a marca da cruz, na fumaça negra vinda na brisa da manhã. Ah, como é difícil tornar-se herói, só quem tentou sabe como dói vencer satã só com orações!”. Num concerto místico do instante, Caetano segreda que “alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João”. E o inspirado Noel nos conta indecifrável drama de arrabalde: “Lá no morro da Mangueira, bem em frente à ribanceira, uma cruz a gente vê. Quem fincou foi a Rosinha, que é cabrocha de alta linha, e nos olhos tem um não sei quê...”.
Eis, resumido, o “não sei quê” tão misterioso como aquela “alguma coisa” indizível acesa na alma da gente. Eia!, o lenho ungido de enigmas e que, ao libertar-nos, nos prende como seres penitentes, sublimes, sacrais e culposos, a cruz.