ROMILDO SANT'ANNA
Por que ler os clássicos

A cada janeiro me dou conta de que sei menos que pensava que sabia. E me conturbo com alguns novatos emergentes, amiúde a perguntar mais ou menos assim: cê leu o último Alan Pauls? Com indomada ligeireza, arremata em tom narcíseo dos novatos: mesmo que argentino, sinto um lastro parisiense de Cortázar em Pauls! É seu modo de fazer-se importante e, nas entrelinhas, dizer que estou superado.

São as regras da vida, naquele estágio em que uns, no acender dos caminhos, começam a nos chamar de “ tios”. Em meu caso, e à contramão nas linhas do tempo, cada vez mais sinto impulso de reler os “ clássicos”. Ufa! Agora, sim, vão tachar-me como o incurável cronista fora de moda!

“ Clássicos”, como diz o termo, são aqueles lumes lecionados em classes. Em tais lugares, geralmente oficiais e a refletir as apartheids inconfessas , é que se estabelecem os hiatos entre o erudito e o popular, a alta e baixa cultura, e se consolida a idéia de que o que provém do simples é de índole inferior, mesmo que reflita estágios agudos do conhecimento.

A propósito, Italo Calvino destacou-se por interessante obra teórica. Seu ensaio “ Por que ler os clássicos” estimula a pensar sobre essa casta egrégia de artistas e obras. Inicia-o com mordacidade: clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer “estou relendo” e nunca “estou lendo”. Sublinha a hipocrisia daqueles que, a certa altura da vida, se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso.

No Quixote , Cervantes reparou que os jovens riem de seu anacrônico cavaleiro andante, os adultos o respeitam e os velhos o celebram. Aconselha que deveríamos lê-lo mais vezes, ao compasso da maturação. Nessa linha, Calvino define como clássicos “ aqueles livros que nunca terminaram de dizer aquilo que tinham para dizer”. E pensa: “deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitá-los. Se os livros são os mesmos ( mas também mudam, à luz das novas perspectivas), nós com certeza mudamos, e o encontro com eles é um evento totalmente novo.”.

Mais e mais, hoje em dia, nos encontramos num fosso audiovisual. Mais visual que áudio, porque ouvir nos impacienta. Nesse moinho de informações, somos rodeados de murmúrios não cimentados na alma. Pois clássico é o “ que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”. É o conteúdo humanístico que ampara como pilastra e nos faz crescer. Assim, um conselho materno que marcou profundamente ( mesmo no coloquialismo de “ baixa cultura”), ou aquela lição do mestre mais querido e erudito poderiam ser “ clássicos” no cerne de nossa vida.

Isto não exime de lermos o que pudermos, dos textos mais penetrantes e profundos, e os simbolismos de outro janeiro, às carícias cromáticas e curvilíneas de uma flor. O saber é que nos difere dos objetos e engrandece o espírito. Lembremos, com Calvino, da derradeira lição de Sócrates : enquanto preparava a cicuta, o pensador estava a aprender uma ária com a flauta. Pra que servirá? – indagou um discípulo. Para aprender uma ária antes de morrer – respondeu. E, como um clássico, soprou um acorde de sol, baixou os olhos e se foi.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.