O título refere-se a um dos mais tocantes filmes de Héctor Babenco (“At Play in the Fields of de Lord”, 1991), realizado inteiramente na Amazônia. Conta a história de missionários empenhados em levar Deus aos indígenas, civilizá-los. Concomitante, exploradores da terra e autoridades venais urdem lançar bombas sobre as malocas para matar e expulsar seus habitantes. Um contrabandista de sangue cheyenne percebe que o que se passa naquele lugar semelha ao extermínio de seu povo nos EUA. Avivando-lhe na alma a sublimidade de ser índio, pinta o corpo, vai de avião e salta de pára-quedas no interior da aldeia. Antes, perguntam-lhe pelo rádio o que estava a fazer. Responde comovido: Brincando nos Campos do Senhor!
Brincar é sorver um estado de graça, espontâneo, inocente. Dizia Darcy Ribeiro, com a grandeza da simplicidade, que o indígena “vive para fruir os mistérios da vida, porque a finalidade da vida é viver”. Partes da Amazônia, tal qual o Brasil antes da descoberta, são terras sem males, morada de Deus. Como Lewis Moon, o renegado índio cheyenne desceu das nuvens, respeitam-no como divindade das enchentes. Porém, trouxe consigo epidemias que dizimarão a tribo que ele queria salvar.
Como a arte quase sempre se antecipa à vida, imagens incrivelmente parecidas com as do filme de Babenco foram vistas, dias atrás, na imprensa do mundo inteiro. Indígenas seminus, pintados de preto e vermelho (não fazem diferença entre o ser, a arte e o sobrenatural) apontam suas flechas para o sobrevôo dum avião da Funai a fotografá-los. A intenção é mostrar que os sertões amazônicos não são apenas fortuna de espécies vegetais e animais, ouro e madeira (até petróleo!), mas santuário da essência do que fomos. Lá estão cerca de 70 tribos isoladas, sem contato conosco, os imponentes não-índios.
Lá vivem, num presente contínuo, “os mais amigos nossos que nós deles”, como anotou Vaz de Caminha. Ali habita a humanidade em estado puro, igualdade sistêmica e antropológica. Por certo que, instintivos como todo o humano, defendem seu território e a legitimidade de serem a si próprios – gente – e, assim, acende neles a inata autodefesa e preservação da vida.
Fico a pensar nas quantas infâmias os civilizados praticam a si mesmos. Se o fazem na ambiência erigida sobre os alicerces da cobiça, paciência. É a lei do cão inscrita, talvez, na ancestral metáfora ou preceito bíblico da “inocência perdida”. Não precisamos estender longe os nossos olhos. Na ocupação das Américas, e em nome da ambição que amaldiçoa, milhões de indígenas foram expropriados e mortos. Nem se pensava em genocídio, pois não se os viam como seres humanos.
Inda hoje, à sombra dessa maldição, indígenas são queimados vivos nas calçadas e, em resposta, urbanóides se defendem a dizer que pensavam tratar-se de simples mendigos. Mendigos aqui, lado de cá, a revelar-nos em nossas cruzadas civilizatórias. Do outro lado, na misteriosa floresta, o restinho do que fomos, esplêndido, como num éden, ou na nitidez dum filme visionário: a humanidade em estado de graça, brincando inocente pelos campos do Senhor. |