Navegante no oceano dos acasos, fui ao lançamento de livro dum incensado poeta. No recinto, improvisou-se o que os promotores da cultura denominam “instalação”. Em preito ao criador, bem entendido, o dito lirista, a manjada luz cavernosa e folhas de mangueira pelo chão, infundindo ao local ares bucólicos (até selvagens!), quiçá ilusão dum éden onde o prodígio desponta com o frescor das nascentes.
De súbito, uma atriz irrompe no burburinho e, com o olhar perdido, põe-se a balbuciar palavras soltas, reticentes, vociferando ao léu... cruéis angústias. No lento solilóquio, mudou de repente de tom e, sem mais nem menos, franziu a face e apontou-me acusativa: “Aonde vais, estrangeiro? Por que deixas o solitário albergue do deserto?”. Fez calculada pausa e mil olhos me focalizaram. Seguiu enérgica: “O que buscas além dos horizontes? Por que transpor o píncaro dos montes, quando podes achar amor tão perto?”. Desvencilhei-me fazendo que não, tá oquei, *#@&?, e saí de fininho balangando o gelo no uísque de fronteira.
O poeta, fronte larga, olhos miúdos e cabelos encrespados, tinha um quê de Joaquim Nabuco não fosse a compleição arqueada, a saliência dos dentes incisivos e o hálito de alfazema. Artesão de signos (como o enalteciam no folder), transitava em linho branco e suspensórios. A camisa fechava-se no último botão e, no lusco-fusco, se insinuava augusto, casto e flutuante. Semelhava os que habitam nirvanas e, dali, se furtam dos mortais comuns e o ordinário da vida. Seu norte, excelsos da modernidade: Baudelaire, Valéry, “Divagations” e “L’Azur” de Mallarmé, Cézanne, sem falar em Proust, vestal “prisonnière” das horas redescobertas ou “à la recherche du temps perdu”.
Ah, quanta perda de tempo, como solenizam os medianos! Havia uma mestra na universidade que contava uma história. Certa vez, Castro Alves, enamorado de rica donzela, convidou-a à contradança. Ante a recusa, pôs-se em ira. E explodiu assim, ufano e repentista: “Deixa-te disso, criança!”. O piano emudeceu em consonância com as bocas em suspense. Era insolência além dos limites. Seguiu peregrino, profeta: “Deixa de orgulho, sossega! Olha que a vida é um oceano por onde o acaso navega! Hoje, ostentas nas salas as tuas pompas e galas e teus brasões de rainha! Amanhã, talvez – quem sabe? –, todo esse orgulho se acabe, seja-te a sorte mesquinha!”.
Sabíamos que o estro não era de Castro Alves, mas doutro baiano, Trasíbulo Ferraz. Deixemo-lo concluir: “Todos nós somos iguais, o que é belo e sempre novo é ver-se o filho do povo saber lutar e subir. Ouve mais esta lição: grande foi Vítor Hugo, grande foi Napoleão! De que vale nobre família, linhagem pura de avós, se o sangue que corre em ti é o mesmo que corre em nós?”.
Esplêndido! Nada de “instalações”, efeitos cenográficos e folhas de fícus que encheriam sacos. Naquela noite de autógrafos, só um Trasíbulo fora de moda, mistificado como sábio das letras, uma atriz despirocada e mentores culturais a ilusionar os incautos. Entre esses, eu, estrangeiro cronista, marejado pelo uísque paraguaio, num oceano onde os acasos navegam. |