Ao cair do outono morreu Jamelão. Em colunas laterais, os jornais enumeraram sentidos pesares e repetidos suspiros: “Foi uma perda irreparável!”. Calou-se o velho cantor de voz áspera, crispada, afro, sofridamente orgânica, como que raspando o tacho dos mais fundos sentimentos em sua crosta de melancolia. Chico Buarque opinou com a perícia dos poetas: “Foi o melhor mau-humor do Brasil”.
Na trilha desse mote, quero falar do melhor mau-humor do mundo, Arthur Schopenhauer. Era um pessimista! Na essência do ser estão as suas vontades – pensava. O sujeito quer não porque tenha razões para querer, mas cria razões porque quer, escreveu. E como o querer é origem da dor e do mal, a consciência disto nos leva a rápidos contentamentos. “Somos mais vocacionados à dor que à sua ausência”, assinalava, e só faltou redizer-nos: Olhai os lírios do campo!
O mau-humor de Schopenhauer se engendra em razões meditativas, mas também por presenciar menosprezo à sua obra. Desde a publicação de “O mundo como vontade e representação” (1818) até o compêndio com título aproximado a “Acessórios e remanescentes” (1851), o autor viveu solitário. Só no ocaso da vida foi reconhecido como o arguto estudioso das agonias humanas, precursor da psicanálise moderna e inspirador de grandes artistas até hoje.
Em “A arte de escrever” (coletânea de ensaios reeditada no Brasil em 2008), coloca-se como o pensador polêmico que, em vários aspectos, encampa a realidade atual. Sobre as universidades, diz que muitos mestres não se esforçam pela sabedoria, mas pelo crédito que ganham dando a impressão de possuí-la. São malpassados atravessadores do saber alheio. Imitando-os, seus alunos não aprendem pela instrução, mas para tagarelar a torto e direito, com ares de importantes. Indagava: “Para que existem essas academias que se tornam tão amplas e abrigam tantos medíocres sempre a se vangloriar?”.
O filósofo alemão contestava a diplomação crescente dos especialistas. Imagine se vivesse hoje em dia! Propunha que, nos vários campos do saber, a humanidade exige universalidade e visão geral. Espíritos de primeira categoria nunca são eruditos numa só coisa, pois a totalidade da existência é que se impõe como problema – sentenciava –, e só assim transmitem novas soluções para o desenvolvimento.
Zombava da falta de escrúpulos de certos diaristas [jornalistas], da literatura de consumo, e de teóricos e críticos de arte que, de posse do que já foi dito, reformulam as terminologias com o intuito de encenar seu próprio valor. “É melhor comprar livros de segunda-mão do que ler conteúdos de segunda-mão”, resmungava. E sobre os tradutores que corrigem as obras originais, desafiou: “Escreva seus próprios livros dignos de serem traduzidos e deixe outras obras como elas são”.
Dizem que, certa vez, uma fã de Jamelão quis dar-lhe um beijo no rosto. Esquivou-se ranzinza: “Sai fora, tonta, sei lá onde você andou com essa boca!”. Respeitadas as devidas proporções, Schopenhauer foi o Jamelão de seu tempo a alumiar as escuridades do mundo. E pela agudez desse humor febrilmente afiado, tiramo-lhes o chapéu. |