No ano em que se alembra o centenário da morte de Machado de Assis, queria reverenciá-lo por meio de um de seus grandes romances. Mas tudo que escrevesse seria irrisório ante a fortuna crítica acerca do maior ficcionista brasileiro de todos os tempos. Pensei então em aludir a seus contos, mas são tantos e extraordinários que não caberiam no espaço desta crônica. Contento-me com um deles, dentre os que mais me emocionam: “Cantiga de esponsais”, publicado em “História sem data” (1884).
Joaquim Maria Machado de Assis é magnífico exemplo de como o gênio artístico não se condiciona a relações sociais ou a outras razões senão as da própria arte. Superando as circunstâncias de sua época, fala dela referindo à eternidade. Procedente de família pobre do morro do Livramento, Rio de Janeiro, epiléptico e sombreado pela condição afro-brasileira em tempos de escravidão, ajunta-se aos poucos de todos os confins da terra ungidos pelo talento de desenhar o painel abstrato que relata a natureza humana universal, atemporal.
Em “Cantiga de esponsais”, o memorialista se dirige a uma leitora, convidando-a a imaginar-se em 1813, numa daquelas missas cantadas com alma e devoção. Enfoca mestre Romão, o velho regente do coro, sempre com o ar circunspecto, olhos no chão, riso triste e passo demorado. Comumente sozinho, tinha a vocação íntima de compositor; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, mas que não conseguia transportá-las ao papel.
Expõe o narrador que o músico fora casado com uma jovem que o amava tanto como ele a ela. Três dias após desposá-la sentiu uma coisa parecida com inspiração e pôs-se a compor uma música que refletisse a plenitude do casal. Mas a mulher morrera pouco tempo depois e Romão passou o resto da vida tentando enunciar a mesma canção, agora em lembrança da felicidade extinta. O pouco que conseguira escrever estacionava num “lá”, a derradeira nota bloqueada no pensamento.
Vendo-se muito doente, forçou-se por terminar a composição. Foi nesse tempo que reparou na casa defronte dois jovens casados, com os braços por cima dos ombros, as mãos presas e a se olharem em sorrisos. Voltou ao cravo, mas nenhuma inspiração, nada que o fizesse ultrapassar aquele “lá” vincado de angústia. Em desespero, rasgou a inacabada partitura. Nesse momento, a moça apareceu à janela cantarolando uma música nunca antes cantada nem sabida. Após um “lá”, entoou uma delicada frase musical, justo a que mestre Romão procurara obstinadamente sem nunca conseguir. Ouviu-a... e morreu.
Assim é Machado de Assis, amargo, irônico, enigmático. O significado de seus signos se engendra no vão entre o dito e o não-dito e, pela beleza, coloca-nos em estado de graça. Propicia a luz da descoberta de nós mesmos. Tal primor é inefável, embora verdadeiro. Reside após aquele “lá” que só o transpõem os grandes artistas. Esses enxergam por uma janela invisível e percebem o intenso pulsar humano numa voz ao acaso, anônima, fugaz como a música. Que soa lindamente nas partituras do mundo ou – quem sabe? – além das estrelas (M. A., 1839-1908). |