O título tem sonoridade e clarão em cinemascope: literatura cinematográfica. Mas parece impróprio, já que o cinema é literário. As sagas em letras artísticas germinaram nos tempos de Homero; as audiovisuais apropriam-se de seus meios com tecnologias recentes. Ou não? Na dúvida, ao menos se acasalam bem ao pórtico dum pequeno texto que pretenderia cruzar cinema com literatura.
Na Festa Literária Internacional de Paraty (o mais charmoso evento das letras no Brasil) uma nota insistente é a aproximação das duas artes e seus artistas. Em 2007, participaram o argentino Alan Pauls (“O Passado” adaptado às telas por Héctor Babenco), Fernando Morais (o romance-reportagem “Olga” virou filme) e Paulo Lins (“Cidade de Deus” e scripts da minissérie “Cidade dos Homens”). Brindaram-nos o norte-americano Dennis Lehane (seu best-seller “Mystic River” transformou-se no inquietante “Meninos e Lobos”, de Clint Eastwood) e o mexicano Guillermo Arriaga (“Amores Brutos”, “ 21 Gramas” e “Babel”) que, segundo ele, escreve roteiros como um gênero literário.
Neste começo de julho estavam presentes a cineasta argentina Lucrecia Martel (“O Pântano” e “A Menina Santa”) e o dramaturgo inglês de origem tcheca Tom Stoppard que, a quatro mãos, assinou o roteiro do laureado “Shakespeare Apaixonado”, inspirado em seu romance. Muito simpática foi a mesa de entrevistas, depoimentos e diálogos do ilustrado cronista Cotardo Calligaris, da Folha de S. Paulo, com o escritor italiano Alessandro Baricco (sua peça “Novecento” foi transformada no comovente “A Lenda do Pianista do Mar”, de Giuseppe Tornatore).
Indagado se a fita foi fiel a seu escrito, respondeu que são linguagens distintas, cada qual com exigências peculiares de produção, comunicação com o público e efeitos estéticos. Contou que esteve com Tornatore para discutirem a adaptação e este lhe fez entender que um filme caro como “A lenda...” exigiria a inserção duma personagem feminina, bonita, inexistente na peça. A amizade entre os dois músicos do texto (que afinal é uma história de amor) se completaria com a paixão do pianista por uma jovem no navio. Assistiu ao filme como um espectador comum, ao mesmo tempo perto e distante de sua criação em palavras.
Disse Baricco que, por influência do cinema e a força dos meios audiovisuais, a literatura atual é diferente de há 100 anos. (Já notara isto o ensaísta e cineasta Serguei Eisenstein: a estética tradicional é discursiva, analítica; a moderna, sintética.). Lembrou que Balzac ocupava páginas a descrever uma cozinha, em pequenos detalhes. O leitor hodierno não carece disso, tem em mente infindos modelos e, quando o autor alude a esse lugar da casa apenas sugere: “exalava dele o forte cheiro dum cadáver”. A escrita literária tornou-se ágil como o cinema.
Pelos tempos afora os filmes nutriram-se dos devaneios em prosa e suas técnicas. Hoje, dentro da escrita estão a música pop, a história em quadrinhos, telenovelas, as mídias que nos cercam. Quem não se apercebe disto condena-se ao naufrágio. Talvez como o casmurro pianista do mar que nasceu e morreu atracado em seu navio. |