ROMILDO SANT'ANNA
Navios-fantasmas

A Lei Áurea faz 120 anos. Foi sancionada por princesa Isabel, em nome do imperador Pedro 2º. A extensa graça da Redentora lhe reafirmava o lastro de nobreza: Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon. Mas foi lacônica: “É declarada extinta a escravidão no Brasil; revogam-se as disposições em contrário.”. Proclamada a República, e tida como “fanática” por casar-se com o estrangeiro conde D’Eu, exilou-se com o marido na região francesa da Normandia.

Foi ato humanitário? O dilema de Isabel configura-se numa carta ao pai, no mesmo 13 de maio: “É de minha cama que o faço, sentindo necessidade de esticar-me depois de muitas noites curtas, dias aziagos e excitações de todos os gêneros”. Havia pressões externas e os abolicionistas locais não davam trégua. Ademais, a aristocracia escravocrata considerava oneroso o braço servil africano: submetido a atrocidades, uma “peça” – como referiam aos escravos – durava em média 7 anos no trabalho agrícola. Melhor, pensavam, o suor europeu, camponeses italianos mal-pagos e que, ademais, promoveriam o “esbranquecimento” do país.

Findava, nas entranhas da desonra, o cortejo atlântico dos funestos navios. Castro Alves consignou esse retrato numa das mais dramáticas páginas da poesia oratória em língua portuguesa. Nos porões infectos, o vira-mundo, a dor e loucura como imagens do horror: “Presa nos elos de uma só cadeia, a multidão faminta cambaleia, e chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, outro, que de martírios embrutece, cantando, geme e ri.”.

O poeta é mestre das tintas conceituais e pintura de cenas. De início, situa-nos na calma entre céu e o oceano: “Stamos em pleno mar...”. Mas, lá embaixo, vai uma embarcação flagrada em vergonha: “Por que foges assim, barco ligeiro?” E nos aproxima dela, descortinando-lhe os porões em entreluzes e closes: “Negras mulheres, suspendendo às tetas magras crianças, cujas bocas pretas, rega o sangue das mães. Outras, moças, mas nuas e espantadas, no turbilhão de espectros arrastadas, em ânsia e mágoa vãs... Se o velho arqueja, se no chão resvala, ouvem-se gritos, o chicote estala, e voam mais e mais.”.

Aquela lei nos redime? Assim que promulgada, os escravos saíram às pressas pelos becos pra sentir o gosto de ser livre. Por detrás, o rastro de segregação e desprezo que marcaram a formação do país. Que liberdade? É só olhar em volta e nos confrontamos com Nicolau Maquiavel, “o destino não muda de sentença quando não se muda o modo de agir”. As “disposições em contrário” persistem té hoje em terra firme e, pior, nos elos de outras cadeias.

No rap “Haiti”, Caetano e Gilberto Gil registram com realismo como se trancam os pretos e quase-brancos, e como os quase-pretos de tão pobres são tratados. Destroços de navios-fantasmas se espalham pelos confins, sob o manto da hipocrisia, e deles ecoa o mesmo canto indignado: “Existe um povo que a bandeira empresta pra cobrir tanta infâmia e covardia! Meu Deus, mas que bandeira é esta que impudente na gávea tripudia?”. Stamos em 2008, que fizemos?

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.