Ilha Grande, a 1h30 de Angra dos Reis, singrando em pitoresca barcaça. De lancha, 40 minutos. Local paradísico de montanhas, brancas areias e cintilantes regatos; no aprazível vilarejo, ótimas pousadas e restaurantes. Em contraste com a amenidade natural e exuberância das cores, mal esconde as marcas de amargura em seu leme, o “caldeirão do inferno”.
Orígenes Lessa, entre as centenas de detentos da Revolução de 32, no livro “Ilha Grande”, assim descreve os camaradas de penúria, trôpegos, esvaziados de alma: “Homens barbudos, seminus, cabisbaixos, amontoados no chão. Alguns gargalham rudemente, gritam insultos, soltam blasfêmias. Outros passeiam sombrios, a mão na barba e o pensamento longe.”.
Em “Memórias do Cárcere”, obra de confissão biográfica e testemunho histórico, Graciliano Ramos registrou a admoestação dum vigia e a sina dos vigiados na penitenciária de Dois Rios: “Aqui não há direito. Escutem. Nenhum direito. [...] Atenção! Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer”. Isto se deu pelo ataque do Estado Novo aos “comunistas”, sob a mão contundente e repressora de Getúlio Vargas. Tais sombras murmuram nas pedras e escombros do demolido presídio.
Havia também um lazareto. Eram colônias em lugares ermos usados para triagem e quarentena de imigrantes suspeitos de moléstias contagiosas contraídas geralmente nos navios. No da Ilha Grande, construído em ponto estratégico entre São Paulo e Rio, aportaram mais de 4,2 mil embarcações. São braços que substituiriam a escravidão. Após, o lugar passou a receber outras gentes, no afã de limpar a capital republicana da ralé: infratores, mendigos e pretos.
O lazareto da Ilha Grande, próximo da enseada onde se formara a vila Abraão, funcionou a partir do final do século 19, tal como o imaginara o imperador Pedro 2º. Era uma fortificação de 3000 metros, erigida com espessas paredes de pedra, e em três pisos, como as classes separadas nos navios. No andar inferior, porões úmidos e infectos feito masmorras. Tornou-se a Colônia Penal Cândido Mendes. Padeceram ali milhares de sentenciados comuns e perseguidos.
Visitei um velho guarda daquele presídio. Mantinha sobre a mesa o funesto suvenir: um porrete de lenho duro e pesado. “Naquela época batíamos nos prisioneiros!” – falou com sorriso tímido, desbaratando talvez agudas recordações. As ruínas da carceragem gritam aquelas dores. Do lado oposto à vastidão do mar, o túnel assombroso de entrada; na lateral, viseiras e grades confusas na vegetação e por onde se deixam ver o corredor e celas encravadas na rocha. Inscrições parietais aludem a Deus e às privações humanas.
Parecem catacumbas de Roma ou eivas de condenados pela Inquisição no velho mundo, com a diferença de que lá se mantêm como atestados sociológicos. O lazareto fluminense veio ao chão em 1963; Dois Rios, dinamitado em 94. É nosso jeito de tentar varrer da história os vergões da insânia. Ilha Grande, com o viço dos recantos afáveis e o cinzento dos suplícios, é inscrição em pedra e sumário tangível doutra ilha prometida, a da vera e santa cruz, o Brasil. |