Acaba de sair em DVD o filme “O engenho de Zé Lins”, de Vladimir Carvalho. Ao enfocar o menino escaldado em engenhos do sertão paraibano, o documentário mostra como uma vida marcada por trágicos sucederes aflora na usina criativa dum grande escritor. “O menino é pai do homem” – assinalou Machado de Assis. E esse homem derramado em livros nos propiciou o painel sensível dos alicerces socioculturais do Brasil arcaico de seu tempo e a persistir inda hoje.
Sempre fui encantado por esse artista da palavra e, em 82, lhe dediquei o ensaio “A presença do cordel na prosa de Lins do Rego” (“Revista Brasileira de Semiótica” da USP). Baseado em “Cangaceiros”, mostrava como seus romances se mesclam de ritmos e cadências da poesia popular, carreando-lhes, em certas instâncias, aspectos de narrativas versejadas. Repare esse trecho: “E marchou para o meio dos cangaceiros, / rompendo por entre os romeiros, / que caíam a seus pés”.
No cerzimento talentoso da montagem, Carlos Heitor Cony faz instigante reparo: O modernismo brasileiro não nasce na Semana de 22, em geral narcisista e festiva. Inicia-se com a geração nordestina de 1930, incendiada por Gilberto Freyre, e de quem descendem intelectualmente Graciliano, Jorge Amado, Raquel de Queirós e Zé Lins. E Ariano Suassuna afirma que “Pedra Bonita” e “Cangaceiros” situam-se em patamares de grandeza semelhantes aos de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.
Depoimento de Walter Lima Jr. (que filmou “Menino de Engenho”) explica como a obra de Zé Lins é base do delírio andaluz-nordestino em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber. E o poeta Thiago de Mello nos faz entender como a melancolia dos tipos humanos do autor de “Doidinho” resulta de dois tormentos: As dores dos incômodos causados por doença e o sofrimento por construir o engano de que estava bem. José Lins do Rego desentristecia as pessoas que amava.
Sem perder o halo emotivo e a urdidura pedagógica do documentário, o filme é uma costura de detalhes biográficos absolutamente essenciais para a compreensão estilística do escritor. Zé Lins, movido por consciência crítica, ao tomar posse duma cadeira na ABL, em lugar de Ataulfo de Paiva, discursou com ironia: “Venho ocupar a vaga desse brilhante homem que chegou ao Supremo sem nunca ter redigido uma lei, e chegou à Academia Brasileira de Letras sem nunca haver escrito um livro”.
O filme roteirizado e dirigido por Vladimir Carvalho traz em seu refinamento um preito de amor ao cinema, às artes e cultura brasileira. Com a perícia dos fazedores sensíveis, fala das coisas do bem e do bem das coisas. Na ventania do tempo, que muitas vezes varre as virtudes para o esquecimento, reconstrói a imagem dum escritor no aspecto vital que se converte em artístico.
Como escreveu Otto Maria Carpeaux no prefácio de “Fogo Morto”, a obra de Zé Lins “é muito mais que um documento sociológico. É qualquer coisa de vivo porque seu criador lhe deu o próprio sangue, encheu-a de gracejos e tristezas, risos e lágrimas... Deu-lhe o hálito da vida”. E a enxergar isto é que nos convida o cineasta nesse filme alentador.
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