Diz o saber popular que não se empresta dinheiro a amigo, pois, amiúde, se perdem amigo e dinheiro. É a mais nefasta das operações de risco. De início, ergue-se o empedernido muro da dívida. É pagar e não bufar! Com o tempo, vêm as notas de ressentimento que desembocam em suspeitas, palavras mal postas e sinais de ingratidão. Por fim, a devolução do que foi emprestado adquire contornos de sujeição a um preço fixo, reembolso e ressarcimento, reparação moral, extinção de encargo, desforra e malquerença.
Pagar empréstimo a amigo é desobrigar-se de imaginária fatura. No íntimo, folheiam-se escriturações contábeis de custos & benefícios, lucros & perdas, perdas & danos. E o emprestador recebe a compensação em moeda corrente, como nas transações financeiras e pecúlios. Esse termo, diga-se, provém de “pecus” (gado, a garantia que se dava pelo empréstimo), e dele fervilha a idéia de peculato ou calote. Assim, o que pediu emprestado coisifica-se na dívida e se sente um ser pecuário.
O que propicia mesmo alumbramento e conforto d’alma é a sensação de dever pelos atos impagáveis. Nesses casos, o “ter que pagar” perde o condão imperativo e se tonifica de enlevo e bem-aventurança. Mesmo pressupondo o frio metal (nem só isto se empresta a alguém), o dinheiro se dissipa na magnitude do gesto, em geral inestimável nos eitos da vida.
Conto uma história que, talvez, alegorize o que estou a dizer. Penitencio-me pela indiscrição em revelar, ao fim do texto, o personagem central. Ele, generosa criatura, põe em prática o ensinamento de que não se devem tocar trombetas ao redor quando se ajuda o próximo.
Era uma vez um menino de 12 anos, aprendiz de escritório. À época, um jovem de tempero árabe era caixa da coletoria e recebia impostos semelhados aos de hoje. Ao chegar sua vez na fila e com a guia de recolhimento na mão, o garoto buscou no bolso o valor correspondente. Cadê o dinheiro? Tremeu sentindo por antecipação as conseqüências do desfalque junto ao emprego, à família e, quiçá, à polícia. O funcionário o olhou condoído, franziu a testa, rubricou o recibo e ordenou em voz serena e grave: “Vai com Deus, fdp!”.
Anos após, o menino virou mestre na universidade; em sala próxima (como esquecer aquela voz a recitar poesias?), o antigo caixa da repartição. Tornaram-se amigos embora o ex-coletor de tributos não atinasse por detrás do novo colega o jovenzinho apavorado. Certa vez, tendo que fazer um título no banco (não lhe repuseram o que emprestara), pediu ao professor novato que lhe fosse o endossante.
No vencimento, esse pensou em revidar-lhe o desvelo: foi cedo à agência e liquidou a promissória. À noite, a voz sentimental lhe fez agoniada visita: “Não sei o que houve, a conta sumiu! Mas não se preocupe, meu avalista, houve erro; amanhã dão resposta!”. O colega foi à gaveta, entregou-lhe o papel quitado e narrou a história dum garoto mirrado, trêmulo de aflição. Ambos, impagáveis, se abraçaram comovidos.
O declamador de emotivos poemas, com a mesma voz impostada, é o elegante Zêqui Elias; o menino mixo sou eu, penhorado pra sempre, em doces recordações. |