Literatura? Nem vem! – tripudia a moçada. Aos jovens, escolas prescrevem livretos como sobre o “julgamento de Capitu” e sucedâneos resumidos que os isentem dos originais. Repisando o chavão de que “no meu tempo era melhor”, mesmo garotos de vila comendo poeira fazíamos uma corrente que nos interligava em certas leituras. Eram histórias fabulosas e românticas, Castro Alves, Bilac e Giuseppe Ghiaroni , Malba Tahan, Sra. Leandro Dupré e, como esquecer os peitinhos de “Clarissa” sob a blusa do uniforme?
À surdina, arregalávamos os olhos com a “Nossa vida sexual” de Fritz Kahn, o guia das coisas de que não se falava em público. E, na proporção dos primeiros pêlos, iam encapados em papel de embrulho o “Trópico de câncer” e “de capricórnio” de Henry Miller. Concomitante aos pecados por palavras e pensamentos, aprendíamos com Saint-Exupéry que o amor é a única coisa que cresce à medida que se reparte. Nesse ponto já éramos homenzinhos meditativos e prendíamo-nos em “Sidarta” e ao “Lobo da estepe”, de Hermann Hesse, e prontos para “O Limiar da Vida” e outros filmes de Bergman.
Duas obras marcaram nossa geração: “1984” e “A revolução dos bichos” de George Orwell. Como seria 84, um ano tão distante? Num regime totalitário, com câmeras a nos vigiar em todos os lugares, haveria uma entidade suprema, Big Brother, o “Grande Irmão”. O partido único proclamaria que “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força”. O Ministério da Fartura administrava a fome; o da Verdade, a falsificação de dados; o do Amor torturava e eliminava opositores. Pela nova língua, não existiriam maus nem bons, mas seríamos “imbons”, ou os mais para o mal. Por todos os cantos, cartazes intimidatórios: “O Big Brother está a observar-te”.
“A revolução dos bichos” era uma fábula de ruínas e alegorizava muitas formas de governo. Cansados da opressão e comandados por dois porcos, os animais se rebelam e decidem viver por si mesmos. Decretam 7 mandamentos: qualquer ser que ande sobre duas pernas é inimigo; qualquer ser que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo; nenhum bicho usará roupas; nenhum bicho dormirá em cama; nenhum bicho beberá álcool; nenhum bicho matará outro bicho; todos os bichos são iguais.
Entretanto, ensandecido pelo poder, um porco-líder assassina o rival e torna-se tirano. Compõe politicamente com os arquiinimigos (os donos de fazendas) e forma oportuna coalizão de “seu” governo. Agindo em benefício próprio, e dos aliados animais e humanos, altera a redação de 3 mandamentos: nenhum bicho dormirá em cama [com lençóis], nenhum bicho beberá álcool [em excesso] e nenhum bicho matará o outro [sem motivo]. Por fim, modifica o último preceito: todos os bichos são iguais [mas alguns são mais iguais que outros].
Porcos rapinóias, galináceos adiposos, macacos venais, taturanas toscas, astutos faisões e vampiros em conluios encheriam os palácios, parlamentos e repartições. Entre espanto e receio, nos dávamos conta de que, na ficção de Orwell , quaisquer semelhanças com pessoas e fatos, daqueles tempos e vindouros, não eram loucas coincidências.