Sugere que, além de Deus, nada existe tão igual a si mesmo que essa imperatriz noturna, esse acalanto das coisas que se agitam, a morte. O criador do ser e a inexistência do ser – o não-ser – situam-se em hierarquias distintas, porém entremeadas. Representada pela foice que extingue, a intermitente morte, esse “ labirinto sem portas” como a desnudou Saramago, é o definitivo mergulho no desconhecido.
Quando criança, tinha uma visão doméstica da morte. O arrepiante medo dela circundava nossa casa. E n osso pai partilhava conosco um assombro de Álvares de Azevedo: “Se eu morresse amanhã, viria ao menos fechar meus olhos minha triste irmã; minha mãe de saudades morreria se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã, eu perdera chorando essas coroas se eu morresse amanhã!”. Hoje, egoísta pertinaz, penso no amanhã sem mim. Quem vai sentir minha falta? Aterroriza-me pensar no que será quando não mais serei.
O pensamento epicurista, num labirinto da lógica helenística, examinou o óbito. Como em consolo, fala que a morte não nos diz respeito. Reside em outra esfera, pois “ quando somos, ela não é, e quando a morte é, já não somos mais”. Outros a pensam como transformação renovadora, o húmus da nova existência. A cena inicial do “Hamlet” é a noção quase cômica de uma insólita reencarnação: “Alexandre morreu, foi sepultado. Voltou ao pó. O pó é a terra e com a terra se faz a argila. Por que a argila em que ele se transformou não poderia vir a ser a tampa de um barril de cerveja?”.
A morte, esse vale misterioso no ocaso, é a terrível instância de nossa finitude; somos um personagem em cena, num ato efêmero entre os infinitos atos dum drama chamado Existir. Contrasta-nos com o divino. Mas, numa interpretação corpórea da existência, Schopenhauer escreveu que o horror que temos dela “ não é tanto o fim da vida, pois isso não pode parecer a ninguém como particularmente digno de pesar, mas, antes, a destruição do organismo, uma vez que este é a própria vontade de vida que se manifesta como corpo”. E acrescenta, pessimista: “ tu és o produto de um ato que não deveria ter sido; assim, tens de morrer para anulá-lo”.
A morte é a ancestral quaresma que não cessa. Ironicamente, é silenciosa adjuvante da delícia de viver. Enlaça-nos a seu beco sem saída. Nas “ Intermitências da Morte” de Saramago, e fazendo-nos perceber o que seríamos sem ela, a morte mesma nos manda um recado: “ a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá o prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”. Rimos e tentamos ser felizes. E desfiamos, mesmo que fingidamente, a ventura de viver.
Dizem que indagaram a Molière, no leito da dor, se lhe era difícil morrer. Até que não, respondeu o dramaturgo. Difícil é escrever uma comédia. Comédia da vida, sob uma sombra movediça e arrebatadora, a morte. |