ROMILDO SANT'ANNA
Férias da seleção

Entre as efemérides de praxe, um alentador acontecimento de final de ano são as férias da seleção. E antes que se indague o porquê, ouso explicar: não as férias a que as estrelas canarinhas têm por direito, mas as que nos dão por consolo.

Primeiro , o treinador biônico. Quando o tiraram da manga, como a um coelho de laboratório, pensávamos que fosse provisório, experimental. Mas, jogo em jogo, Dunga apresentava-se em estampadas camisas as quais, tão bizarras e narcíseas, deram o que falar em charges e botequins. Então, em vez de o sacarem da trupe, já que futebol não se via, mandaram-lhe que não mais o víssemos em tais camisas. E o mantiveram como técnico porque, pelas investidas toscas no terreno da moda, vestia-se como luvas no corpo do time.

Entra dezembro e a sensação é de um alívio cívico pois, de brasileira, a seleção tem pouco. Mal conhecemos os gajos que ganham fortuna e massa corpórea em países ricos. A escalação de uns é tão estranha quanto a presença do treinador. Como o boquiaberto Dunga, na cavernosa fábula da Branca de Neve, quase todos são marcas de fantasia, peças ilusórias, a ponto de um deles se apresentar como “Vagner Love”, rótulo que semelha ao dos perfumes baratos em bancas de feiras. De resto, um “déjà vu” de arrabalde que os europeus vêem como mais um sinal de nossa mixórdia inculta e bela, ou, como a captou Nélson Rodrigues – antena do insólito –, a “ pátria em chuteiras”.

À rara festa do gol, uma tola mise-en-scène. Os jogadores só se explicam diante de banners publicitários e empenham-se na celebração de si mesmos. Mas é difícil identificá-los, repito, exceto por informações amáveis, jactanciosas e quiçá interesseiras de influentes cronistas desportivos. No que chega ao povo pela mídia, fecha-se a redoma que envolve o escrete em seus nublados segredos.

Falar de quem, se só os vemos em corpo inteiro quando perfilam para o Hino Nacional? Nessa hora, o que se desenha é o painel vivo da esquisitice. Uns baixotes, alguns troncudos, outro com a melena enfeitada em azul, e quase todos tão desafinados como a foto do plantel. No narrar descritivo da câmera, Ronaldinho, o pop-star de bicancas, com seus cachos sob a faixa na cabeça, aparece no incrível contorcionismo lingual à órbita da boca, pincelando os lábios com saliva. A imagem, anexada ao hino, é um misto de constrangimento e grosseria.

Centrados nos contratos mercantis e no ritual dos egos, recusam-se a formar um time. Desrealizam o esporte coletivo. Competindo entre si, são solistas numa opereta sem enredo e batuta. Barítono rouco, Robinho vai pela grama como que deslizando uma grife, um “case” do marketing ou degustando a aura de gênio. Ufano dos chutes de bola, dá a entender que encarna as façanhas de um herói épico. Mas, apeado das embarcações fabulosas, nem se percebe um tripulante em bisonho pedalinho. E pedala, pedala!

Que desplante à multidão que se amofina num “ quadrado mágico” e bebe no gargalo a anestesiante pinga do futebol! A seleção, como signo da pátria, é alegoria candente dum país que fenece. E que, forte, persevera e se alevanta.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.