São notáveis a qualidade estética e teor sentimental do atual cinema argentino. Enquanto no Brasil as feridas da ditadura, a crise econômica e os sucessivos escândalos políticos parecem estimular filmes em que a violência ultra-realista e o submundo do crime saltam agressivamente da tela (cito “Cidade de Deus” como exemplo), na Argentina sobressaem obras que, tendo como pano de fundo as mesmas agruras, tudo é delicadamente emocional e edificante privilegiando-se o humano na dimensão do amor, da ternura e o construtivismo do afeto.
Em clima intimista, e sem cair no piegas, situam-se realizações como “ Lugares Comuns” de Adolfo Aristarain, “O Cachorro” de Carlos Sorín, “Valentín” de Alejandro Agresti, “O Filho da Noiva” e “ Clube da Lua” de Juan José Campanella, “ Não é Você, Sou Eu” de Juan Taratuto, e “Kamchatka” de Marcelo Piñeyro, talvez o mais gentil, singelo e afetuoso filme dos últimos tempos. “Elsa & Fred” de Marcos Carnevale inclui-se nesse rol humanitário e comovente. Todos são disponíveis em DVD.
“Elsa & Fred” (2005) simbolicamente recorre à crença de que o amor é fonte de redenção individual e coletiva. Em seu enredo, deliciamo-nos com citações de outros filmes e cenas que se fizeram clichês na dimensão do afeto e têm como referência estilística o neo-realismo italiano. O título remete ao reencontro do casal de idosos em “Ginger e Fred” (1986) de Fellini; a solidão do velho aplacada pela companhia de um vira-lata lembra “Umberto D” (1951) de Vittorio De Sica; a atração fundamental e clímax do enredo assenta-se em “La Dolce Vita” (1960) de Fellini: remoça a famosa cena em que Anita Ekberg e Marcello Mastroianni se “batizam” na famosa e barroca Fontana di Trevi ( Fonte das Trevas), em Roma. No entanto, a alusão mais sensível à obra de Fellini é a certeza de que a vida se alimenta da fantasia e, às vezes, a imaginação prevalece sobre o real e o próprio sonho. Por coincidência, tais filmes foram concebidos após as tensões do fascismo, depressão econômica e a angústia do pós-guerra.
Em “Elsa e Fred”, quando se pensava que toda a vida tinha sido vivida e as esperanças se acabaram (os personagens têm mais de 80 anos), a existência recomeça com o nascer do amor. Elsa entra em cena como se tivesse saído de outros filmes. Superando o cotidiano passado, seu mundo é um torvelinho de fingimentos, extravagâncias, transgressões e delírios: o cinema. Encontra Fred prostrado e o leva à disposição de recomeço. Imitando personagens, Elsa é a criatura ciente de ser personagem e necessita de um consorte igual a si para fazer-se viva. O encontro jovial de ambos implica a compreensão física, mística e espiritual de que a saída da vida é uma entrada. E entram na história de um filme antigo e com final feliz: “A Doce Vida”.
Nos ótimos atores e inteligentes diálogos, no criativo roteiro que, passo a passo, reinstala a magia de “ Cinema Paradiso” (Fred é Alfredo!), vida e morte, conquista e perda, luz e treva, riso e pranto se entrelaçam positivamente. Simples e grandioso, o filme resume uma atitude sociopolítica de tendência emotiva dos atuais cineastas argentinos. É vê-los e enternecer-se.
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