ROMILDO SANT'ANNA
Zeróis palacianos

Lula constatou certa vez que no Congresso Nacional havia mais de trezentos picaretas.  Referia-se aos reis da ilicitude e das tramóias incrustados no legislativo.  Hoje alguns deles são pedestais do governo. Afora isto, chama de heróis aos senhores de engenho. Equipara-os a eminências nacionais como Osvaldo Cruz, Anita Garibaldi, Santos Dumont e Aleijadinho. Estaria o chefe da nação tomado pelo espírito de Macunaíma, o herói sem caráter?  Ou, segundo seu alcance, heróis são astúcias da conveniência, frutos da incontinência verbal?

Há muitas tipificações do herói, mas nenhuma se aproxima da óptica presidencial.  Vladimir Propp ensinou que atos heróicos se delineiam no narrar de nossas vidas. Roberto DaMatta enfocou os “Carnavais, Malandros e Heróis” mostrando como se faz anti-heróica a conduta carnavalizada.  Martin Cezar Feijó em “Herói” divertiu-se ao lembrar que um dos trabalhos de Hércules foi limpar estrume dos estábulos de um rei.  Porém, no gesto de humilhar-se, o magnânimo.

Sobre-humanos, literários ou tangíveis, quem são heróicos? Orfeu, o semideus da música e que desceu aos infernos em busca da amada?  O intrépido Roldão renascido no idealismo generoso de Dom Quixote? Flash Gordon nos embates siderais contra o mal ou os Zeróis do cartunista Ziraldo cujas proezas ridicularizavam a alienação maniqueísta dos super-heróis? Guevara personifica a luta pelos pobres. Incansável, voltou à guerrilha para o fuzil milico num altiplano da Bolívia. O céu brasileiro orgulha-se de Zumbi dos Palmares, mártir afoito dos escravizados.

Edificamos heróis para fugir à repressão do subconsciente, descobriria Freud, ou pra nos defendermos dos monstros que atormentam.  Na primazia das ações heróicas há um quê de redentor, um feito em forma de honrosa façanha, uma virtude moral que os tornam venerados.  Deu-se assim com Tiradentes que, por amor à liberdade, se mil vidas tivera, mil vezes sofreria.

Considerar heróicas as tramas toscas do coronelismo latifundiário é menosprezo à razão universal dos heróis. Como se lê em “Casa-grande & Senzala”, guardamos feridas ainda sangrando do regime patriarcal de exploração agrária. Esta é a monocultura devastadora, a oligarquia escravocrata germinada à sombra das moendas e que, por modos grosseiros, inda comanda o Brasil.

Os gritos do chicote, da bota, do poder repressivo e do castigo sempre escreveram os códigos da lei, decretaram indulgências fiscais e subsídios. No passado e sob o açoite, encheram-se de açúcar as frotas mercantes e nos entorpecemos de cachaça. À força impassível desse regime nasceram os trabalhadores volantes – os bóias-frias –, carroceria alegórica do escravismo.

Um refrão de campanha exortava: “Muda, Brasil!”. Sem que nada fizera pela transformação dos costumes, o presidente vangloria-se do velho e junta-se a ele. Parece ver o produtor rural e a moderna agroindústria sob a batuta dos rinocerontes. Trazendo o heróico à dimensão rançosa e galhofa dos Zeróis palacianos, quem sabe, vaidosamente, conclame pra si a retidão de princípios e grandeza dos verdadeiros heróis.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.