Tempos em tempos, revisito as reflexões do cientista social Roberto DaMatta, principalmente em “Carnavais, malandros e heróis”, “Ensaios de antropologia brasileira” e “O que faz do Brasil, Brasil”. Pois o que suas palavras enunciam de modo empírico e sensível naqueles livros aparecem agora, quantificadamente, em “A cabeça do brasileiro” (Ed. Record, 2007), de Alberto Carlos Almeida. Baseado em dados obtidos com rigor científico, apresenta quadros desmistificadores do pensamento nacional.
Mostra que uma cisão nos separa em dois brasis: o dos habitantes em locais aprazíveis, incluídos e escolarizados e o dos que vivem em ambientes rústicos e desassistidos. Realça que o problema resulta do precário sistema educacional. Porém, as revelações do autor surpreendem inda mais quando se percebe que, em várias situações, as vocações e sentimentos das elites mesclam-se com às das classes alijadas.
A gama de itens abrange situações cotidianas como as relações éticas, o “jeitinho”, o destino, cor e raça, igualdade e civismo. Quero enfocar o capítulo 5, que trata do que pensamos sobre punições ilegais. Quem assistiu ao filme “Tropa de Elite”, de José Padilha, notou que, no grupo de estudos numa faculdade de direito, e do qual participam “estudantes brancos e burgueses” e um preto, futuro policial do Bope, o livro que discutem é “Vigiar e punir”, do francês Michel Foucault, filósofo que se notabilizou por análises dos discursos sobre o poder em sociedade. Poder, eis a questão!
Sobre a “bala perdida” que atinge inocentes, o conformismo restringe-se a exclamações fatalistas como “que pena!”, “que azar ele estar na linha de fogo!” ou, resignadamente, pelo menos os bandidos foram presos e mortos. A imolação ao marginal soa como limpeza. No subconsciente, as agressões letais instituídas pelo Estado realizam o que gostaríamos de fazer ou que pagamos para que se faça. Justiça confunde-se com vingança. Instaura-se um apoio inconfesso à violência, à consentida desforra à margem da lei. Assim, imbuído de que cumpriu o dever de matar, o batalhão canta com ares epopéicos o hino heavy-metal que entoamos silenciosamente em coro: “Tropa de Elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você!”. E uma voz coletiva avisa assustadoramente que “não manda recado e vai à contramão”.
Aspiramos ao olho por olho, dente por dente. À hipótese “alguém condenado por estupro deve ser estuprado pelos outros presos”, 46% da população entre 18 e 34 anos acham correto; 42% dos que atingiram o ensino médio consideram certo, corroborado por 26% dos que têm curso superior. À situação “a polícia matar bandidos depois de presos”, 40% dos analfabetos acham normal. Na outra ponta, 17% dos que têm diploma universitário também concordam.
Correlato à tragédia clássica, segundo Aristóteles, o estilo ultra-realista de “Tropa de Elite” tem a função psicanalítica da catarse: realizamo-nos na ação do outro, a polícia. Entre os antigos gregos, os deuses incumbiam-se de punir. A diferença é que, entre nós e hoje, Capitães Nascimentos são heróis. E às vezes tidos como deuses. |