Jesus iluminado, como todo iluminado, tinha seu bom-humor. Simão, o simplório dos apóstolos, amiúde se atrapalhava em palavras. Certa vez, em descontraído aramaico, o Mestre brincou: “ Pescador, desculpe, cê é bronco que nem pedra!”. Os outros sorriram, deram à comparação aparência masculina e o apelidaram “pedro”. Jesus de repente ficou circunspecto: “ Pois sobre esta pedra edificarei minha igreja e as portas do mal não prevalecerão contra ela!”. Mesmo com a grave sentença, dali por diante só atenderia por Pedro.
Esta passagem, sem o tom das liturgias, é plausível entre nós. Pedro é demais terreno e temos com ele, digamos, uma “ proximidade brasileira”. Explico. Proviemos de extraordinária fusão etnocultural ( ameríndios, lusos e afros) e nossa relação com o sagrado é fruto do sincretismo. Os europeus são formais e cerimoniosos; nós convivemos com os santos de um jeito carnal e familiar. Participam das finanças, jogos e amores. Pra obter quase tudo recorremos a eles por meio de simpatias, preces propiciatórias, promessas e benzimentos, e lhes damos em oferendas manjares caseiros, fumo, dança e cachaça. Catolicismo genérico.
Se o rio não está pra peixe, por que não rogamos a Pedro? Se a estiagem for tirana e ameaça a eletricidade, por que não imploramos a Pedro? Se estiver adormecido, que tal cantarmos em coro erguendo as vozes ou soltarmos rojões que estourem bem alto para despertá-lo? Após, um espocar de fogos de artifício que alumiem o firmamento e o deixem feliz! Ah, velho e misericordioso compadre dos pequenos!
É o intercessor no último retiro. Paciencioso como num pesqueiro, releva certos deslizes a que só os pobres têm o direito. Quebra-nos o galho. Assim, entramos no céu com o cachorro e badulaques da-hora. E, após, em paraíso, desfilamos de verde-amarelo a conclamar que “o samba da minha terra deixa a gente mole, quando não samba, tudo mundo bole”. O evangelista fica sisudo pra manter as aparências. Mas alguém quebra o gelo entoando a marchinha: “ mas Pedro fugiu com a noiva, na hora de ir pro altar!”. É nesse ponto que os estranjas se aporrinham e, em sinal de intolerância religiosa, reúnem-se em colônias estelares ou sonham baixar noutro centro.
Como diz Carlos Brandão, diferentes dos empertigados protestantes que precisam “ ser pra participar”, nós podemos muito bem “ participar sem ser”, ou sermos a nosso modo plural e fervoroso. Assim, o outro mundo liga-se ao nosso como o quintal do vizinho. Pedro singelo e sutil nos entende e, negligenciando a excelsa função de chaveiro do céu, abrasileira-se no altar de nossas crenças.
É a humildade que beirou o desajeito. Quando Jesus foi lavar-lhe os pés, recusou. O rabino explicou-lhe que, se não permitisse, não teria parte consigo. Mais que depressa assentiu: “ Não somente meus pés, Senhor, mas também as mãos, a cabeça... lava tudo se quiser!”. Espelho de nossa alma, acovardou-se numa madrugada ouvindo o canto do galo. Em semelhante momento penso nele nesta crônica. Gracejo para louvá-lo. Fica o consolo: se até o bom Pedro errou de chave, podemos errar também. Amém.