A palavra que intitula o texto estranhamente é estranha: nheengatu. Mesmo em arejados cursos superiores de línguas dificilmente a pronunciam: nheengatu. Parece exortação mágica, sobrenatural, uma heresia que, francamente, é.
Provém dos falares indígenas tendo o tupinambá como referência e significa “ língua bonita”: nheen-gatu. Nheengatu, língua bonita! Até o século 18, era o instrumento de comunicação corrente no Brasil, a Língua Brasílica. Convenhamos: o português ensinado em raríssimas escolas era grafado apenas em documentos da Coroa, cartas provinciais e em textos literários, em geral subservientes à tradição lusitana. Aqui, “no quinto dos infernos” quem iria lê-los?
Os primeiros invasores, homens e pouquíssimos, em meio à população indígena, tinham que se adaptar à nova realidade, ao multiculturalismo e sincretismo étnico que caracterizaram o país. Seus descendentes, geralmente filhos de mulheres índias e africanas, adotaram uma língua mestiça, mistura do português, castelhano e a linguagem de suas mães. O nheengatu era tão intenso que foi adotado pelos jesuítas nos atos de pregação aos “ gentios”; o beato José de Anchieta concebeu peças teatrais e músicas sacras em Língua Brasílica.
Como se tornou a Língua Geral, representando a prevalência do vencido sobre o vencedor, o nheengatu foi proibido em 1734, sob pena de prisões e açoites. Era outra uma forma de expropriação e vassalagem, a demarcação nítida da divisão colonialista de classes, da “ limpeza racial” dos de fora, e do que até hoje impõem como o “ padrão culto” de linguagem. No subconsciente, quem é superior usa a língua de Lisboa; os inferiores comunicam-se no “ falar errado”, o nheengatu. Não esqueçamos: nossa língua oficial é matéria de lei, não o dizer espontâneo que emerge do brasileiro.
Respeitar as circunstâncias socioculturais e políticas do nheengatu leva-nos a compreender o falar cotidiano na região mais populosa do país. Explica-se: c om o “bandeirismo de preação” no século 17, os bandeirantes – mestiços de portugueses com mulheres índias – avançaram pelos sertões na captura de braços e almas para a escravidão. Consolidaram o nheengatu como a “ língua geral paulista” resistente nos confins rurais e proletários, a “ língua errada” do Sudeste.
Variações fonéticas semelhantes a “muié carma e hômi marvado”, “coiêta”, “ meu zóio”, “cantá e sofrê”, “mé de abêia” provêm da dificuldade que os indígenas e mestiços tinham (e têm) em articular certos sons como o “l”, “lh” e “r” em determinadas sílabas. A essa peculiaridade que ressoa lindas letras de canções rurais no ponteio da viola denomina-se “ Dialeto Caipira”.
Estudar nossa língua, nossas línguas, sem o preconceito e horrores da “ apartheid” brasílica é ato de fé nos segredos da pátria. É enxergar o muro que separa dum lado a imposição, doutro, a liberdade; dum lado a tez branca dos que mandam, doutro, o povaréu moreno e preto que cumpre; dum lado o que se integra, doutro o que se desintegra na vastidão da injustiça. Nos entreveros que envolvem o nheengatu, o monumento tosco aos códigos morais e razões que imperam. |