Humildemente ouso referi-lo. A incansável e aguçada inteligência criativa superam em muito a maioria dos literatos, jornalistas e pensadores que têm merecido atenção da crítica. “ Liberdade Liberdade” ( com Flávio Rangel) é marco de clarividência sociopolítica e engajamento artístico; suas peças originais e inúmeras traduções de clássicos e contemporâneos são incomparáveis contribuições à dramaturgia; a produção gráfico-visual, prosa literária e poemas breves em livros e colunas em jornais e revistas revelam uma das mais instigantes e provocativas personalidades brasileiras do decênio de 1940 aos dias atuais. Popular, anedótico e universal, Millôr é fora de série.
Confessa com amarga sinceridade: “ não é que com a idade você aprenda muitas coisas; mas você aprende a ocultar melhor o que ignora”. Até 1962, assinava “ Vão Gogo”, em analogia prosódica com o grande expressionista. Depois assumiu “Millôr”, com “l” duplo e chapeuzinho no “ô”, aceitando uma armadilha da caligrafia cartorária. Foi registrado como “Milton”. Na escola, o “t” rabiscado virou “l” e o corte mal mal-posicionado da letra, o circunflexo. Eis a ironia, a consignação da paródia de si mesmo como espirituosa apropriação do erro: Milton virou Millôr.
Escreve por aforismos, o mesmo artifício utilizado por Hipócrates para ensinar medicina. São breves, pensativas e agudas sentenças. Numa “ lembrança genética” ao curandeiro grego, proclama com malandrice e sensualidade que a “ anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor”. Seu método implica o virtuosismo da arte de escrever, proficiência para os jogos de sentidos, uma gaiola de signos que, aprisionados no contexto, rompem com o esperado e surpreendem.
Millôr mexe com o estabelecido e capta o leitor no contrapé dos conceitos. Nessa linha, observa com desconcertante lógica que “de todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha que a abstinência”. Irônico, recomenda: “ jamais diga uma mentira que não possa provar”. Lírico, contempla o humano com olhos realistas: “ viver é desenhar sem borracha”. Perspicaz sempre, joga em nossa cara que “ não ter vaidades é a maior de todas”. E exclama pessimista: “ como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem!”.
Outra jóia de sua produção são os haicais e parábolas rimadas. Indaga: “Há colcha mais dura que a lousa da sepultura?” Observa: “ Aniversário é uma festa pra te lembrar do que resta”. E nos confronta em dionisíaco conselho: “Goze. Quem sabe essa é a última dose?”. Impiedoso com os efeitos narcotizantes da mídia, exclama com cinismo: “ Maravilha sem par: a televisão só falta não falar”.
Millôr é recusa ao “ espírito de rebanho”, o anticlichê flagrado no pulo do gato, o xeque-mate aos padrões estabelecidos. É o Nietzsche mais do que nunca antidogmático e que se anuncia como “ um escritor sem estilo”. Aos 83 anos e irreplicável, não cabe no compartimento comum dos grandes realizadores. Conforma-se na solidão dos extraordinários. Ano após ano, corporifica o maravilhoso atrevimento do intelecto e o vislumbre paradoxal de seu fim: “É meu conforto: da vida só me tiram morto”. No mínimo, é o máximo. |