ROMILDO SANT'ANNA
Mangando di eu

Dia desses usei a expressão “malemá”, corruptela do insosso “mal-e-mal”, e alguém indagou de onde tirei aquilo.  Respondi citando Manuel Bandeira, na “Evocação do Recife”: da “boca do povo, na língua errada do povo, língua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Gilberto Freyre creditou ao temperamento afro o “amaciamento” da língua lusitana, convertendo-a em brasileira.

Sei que o oficial é nos expressarmos no padrão culto da linguagem. Porém nada como uma dose de afeto pra trincar a dureza das frases, mesmo que se enxerguem nisto as impertinências de um cronista ou licença poética. Penso que a cega fidelidade às normas amiúde condena o texto ao sensabor rotineiro. A construção de sentidos evocativos aceita com paciência pecadilhos de linguagem, e o dizer sai mais afetuosamente doce e colorido.

Numa gravação de “O Menino da Porteira”, de Luizinho e Teddy Vieira, Sérgio Reis cantou, talvez flertando com sisudos puristas do idioma: “toque o berrante, seu moço, que é pra ‘eu’ ficar ouvindo”.  Certo?  Certo, como dever gramatical, paradoxalmente respeitoso mas frio e autoritário. Porém errado, pois anula a tonalidade ingênua e afetiva que desvela o garoto da roça que sonha um dia transpor o interdito, a porteira de seu mundo.  Humilde, ele exorta, na pureza de ser: “toque o berrante, seu moço, que é pra ‘mim’ ficá ouvindo”. Errado? Não. Faz-se a revelação e chamamento à delicadeza e autenticidade da poesia-canção.  Os olhos da mente e da ternura entendem a pulsão dos afetos.

Na infância, referíamos como “calu” a alguém retraído ou fechado em si mesmo.  E espichávamos a prosódia até o último fôlego, como que se lhe esgarçando a timidez: “Fulano é caluuuuu!”.  Não sei se a reinvenção desse signo se deveu ao sucesso de “Kalu”, gravado nos anos 50 por Dalva de Oliveira. Tampouco por que a distorção de sentido – o estranho nome da donzela –  foi tão difundida nestas plagas.  Parece que se sobrepôs ao significado original o encanto-mesmo da palavra em meio às fibras emotivas da tocante música de Humberto Teixeira.

Eis o coração do povo que implora apaixonado: “Kalu, Kalu, tira o verde desses ói de riba d’eu!  Kalu, Kalu, não me tente, se você já me esqueceu.  Kalu, Kalu, esse oiá dispois do que assucedeu!  Com franqueza, só não tendo coração, fazê tá judiação, você tá mangando di eu!”. Vale o implícito, a entrelinha: o que “assucedeu”, denunciado por um claro olhar que se derrama e zomba da gente?  Eis a magia, a química das palavras efervescendo em frases e que atinge mansamente nosso espírito.

O quanto exprime, além da prodigiosa razão, o saber sensório-emocional? Talvez por tais enigmas, Teixeira seja louvado como o “doutor do baião” e grande artista do povo. Lembro-me de seus versos toda vez que escuto um singelo “dispois”, “os ói em riba” e a ternura de alguém a pedir que se cante “que é pra mim ficá ouvindo”.  E penso: se a voz do povo é de fato a voz de Deus, depois de tanta reprimenda a essa bela e tênue teia de sons e sentidos, Ele, maestro ardiloso, é que “tá mangando di eu”.  Em todos os nós.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.