Parede-meia com a infância havia um terreno sem dono, incorporado ao patrimônio do nosso time. Sob a mangueira pousava um cavalo velho e pensativo. Só exultava ao avistar seu dono, o charreteiro a buscá-lo sempre em roupas de domingo. Vez em quando, cedíamos o campinho de bola aos circos-teatro e às quermesses da paróquia. Mas, bom mesmo era o parque de diversões. Chegava e esquecíamos dos duros certames desportivos e tornávamos sócios remidos da maior das maravilhas.
Alvoroço . Entre o coração partido e a curiosidade, espiávamos na barraca de lona a moça magra e tímida, filha de Amós, o dono do parque. Nunca ousamos perguntar que pecado cometera e a fazia transformar-se, às noites, numa Donzela Aranha coberta de tule. Com gestos, ofertávamos-lhe doces e frutas. Mas recusava baixando os olhos, porque talvez não lhe faziam bem. Foge daí! – alguém ordenava. E voltávamos ao rebuliço. Admirávamos a agilidade dos peões descarregando ripa e matula, cavando covas e construindo com folhas de zinco a toca triste da aranha.
Tinha carrinhos de algodão cor-de-rosa, o tiro-ao-alvo com espingardas de pressão, o alto-falante em que se ofereciam guarânias como prova de amizade, a roda-gigante com assentos estofados, os jogos de argolas e pescarias de prendas, barraquinhas de quitutes, jipes que acendiam luzes e as barcaças que oscilavam como pêndulos. Os casais se divertiam competindo em risos quem tinha mais força pra puxar a corda e avoar mais alto. Apostávamos nalguns.
De minha parte, gostava mesmo é do carrossel de cavalinhos. Inda no chão, não passavam de esculturas em madeira com crinas aventalhadas, bocas vivas e olhos rijos, pintados em cores do instinto. Quem não os visse como eu os vira, em evoluções eqüestres ondulantes, pensaria: jamais seriam os ginetes velozes pelos confins da terra conduzindo Rei Arthur, Carlos Magno e os pares de França. D. Quixote não os teria como o tenaz Clavilenho nas nuvens. Nem campeariam em bom galope com El Cid no outro mundo, ou levariam S. Jorge a nos espiar da lua. Amontoados, silentes, sequer lembravam o baio que falava consigo na mangueira e dormitava esperando seu dono.
Meu emprego temporário era empurrar cavalinhos. Sentia-me importante pois o esforço que fazia era o motor da ciranda de delícias como folguedos em valsas. Cuidava pra manter constante o trote ligeiro e via-me contente porque, na multidão de testemunhas, lá em cima, em solene cavalgada, alguns riam pra mim. Em recompensa, o ingresso grátis para os aviões de lata, além da amizade secreta com a Aranha Donzela.
Numa noite caí e as patas do tropel me feriram nas costas. “ Retira o pobre do monturo!” – gritou Amós. Daí, pela vida afora, jamais me encontrei comigo em terrenos baldios. Tudo tem dono, aprendi. Mas inda ouço, num alto-falante longínquo, um cavalinho de pau inservível, cantando sozinho, talvez se alembrando de mim: Onde estás agora, colibri, que teu suave canto não chega a mim? Onde estás agora, meu ser te implora com frenesi? Tudo te recorda, meu doce amor, junto ao lago azul de Ypacaraí. Tudo te recorda, meu amor te chama, colibri...
|