Amanheceu morta num sábado, dia da criação. Deixou na mesa o artigo de domingo. Como abstração em desenho de seu rosto, os conformes de existir renderam-lhe reverência tirando-a do sofrimento no Dia do Trabalho, seu mais solitário feriado.
Poucos penetraram com tanta agudeza a alma em subúrbios de uma cidade pra desvelar os percalços da vida. Falando por imagens, seus relatos ao mesmo tempo em que denunciam injustiças, gritam solidariedade. Conjugando ficção e memória, auscultava o cotidiano, servia-se de notícias, reciclava os dramas domésticos para alcançar o cerne espiritual dos humildes, espiã dos corações angustiados. Eis fragmentos de algumas obras as quais, como a incansável mulher, enfocam o trabalhador.
O conto “O Jeito” (“Idade da Cobra Lascada”) é lacônica tragédia de um desempregado. Preso por enterrar o filho no quintal, explica seu desatino à autoridade: “Eu pensei, sabia que não ia ter jeito. Se conseguisse o registro [de nascimento] ia ter que arrumar o óbito. O menino não foi no médico... Se achasse os papel tinha que ver o caixão. Não tenho nenhum tostão em casa, doutor, estamos passando falta...”.
No romance “Pau Brasil”, o desespero materializa-se num fluxo de consciência. Diante do filho morto, um operário exalta-se em ira e autopunição: “Estou cansado de passar fome, de dever o aluguel, de fingir que comi, de calçar sapato furado. E de não ter leite pro filho, nem caderno, nem roupa. Malditos poderes, maldito mundo, malditas pessoas como eu que não fazem nada! Tenho sede de ter ordenado, de ser suficiente e pôr comida e teto, remédio e educação dentro de casa! Eu matei meu filho! Não roubei leite, não esfaqueei o dono da farmácia pra ele viver. Maldito seja eu, pai desnaturado!”.
“Enigmalião” romanceia o dia-a-dia duma escola. Em dada passagem, o velho bedel tem um choque de estranhamento. Sutil, a narradora enfatiza as dificuldades dos discriminados: “Seu termostato controlador de mensagens acaba de detectar algo novo e a resposta é uma referência de sinais: a professora era preta”.
Confessional e íntima é “Memórias da Menina do Povo”. Lírica e comovente, são flashes das relações familiares, seus júbilos e sobressaltos. É a voz da escritora-menina, amante dos estudos: “No dia primeiro, o pai chegou cedo do serviço, chamou o Ramiro. Foram à cidade comprar o dicionário. Era uma boa notícia, ficamos esperando o livro que tinha custado tantos dias sem pão”. Sublimando o saber como evento mágico, exclama: “chegou embrulhado em papel azul”.
A novela juvenil “Totó Piruleta”, avessa dos contos-de-fada, é uma cruel e inspirada evocação das tiranias. Narrada na percepção dum garoto de subúrbio, mostra como a brutalidade de um amestrador de bichos se projeta na família: “D. Cecília também usava carrana! Uma carrana invisível que seu Quinca empurrava pescoço abaixo. Rasteja! Fiquei assustado. Ela vivia sangrando, só que era sangue invisível”.
Minha amiga, professora no sempre, tinha o condão dos mágicos ensinadores: alumiava o escondido (Dinorath do Valle, 1926-2004). |