A comédia “ Deus é Brasileiro” de Cacá Diegues inicia com uma cena tão comum quanto insólita. Em pesadelo, o personagem chega a uma estação com lentos e cabisbaixos viajantes, outros em filas e arrodeados de anjos. Apavorado, encontra um telefone público. Assim que pega o aparelho, uma voz feminina o saúda: “ Bem-vindo ao serviço geral de informações celestiais! Se for cristão, digite 1. Se for espírita, digite 2. Se for muçulmano, digite 3”. Aparentemente tecla o 1 e ela continua: “ Cristão. Obrigada! Se for católico, apostólico romano, digite 1. Se for católico ortodoxo, digite 2”. Obedece. “Digite agora o número de sua Certidão de Batismo”. Apreensivo, explica à voz eletrônica que não costuma portar tal documento e espera resposta. Passaria teclando por toda eternidade se o outro lado da linha não o advertisse: “ Seu tempo se esgotou. Obrigada.”. E cai a ligação.
Crentes , budistas, quadrangulares, maometanos e sincréticos em geral, não há quem agüente as centrais de atendimento telefônico, audiotextos e mensagens gravadas com enfadonhas musiquetas, fidelizadores de pós-venda e vozes eletrônicas que aporrinham dia e noite. O cidadão liga pro cartão de crédito, à repartição de luz, ao provedor da internet, seguro de vida e mesmo ao cemitério e uma voz macia o recepciona: “Aguarde um instante. Seu telefonema é muito importante pra nós. Espere pra falar com um dos nossos atendentes...”. Os que pedem adjutórios aguardam na hora do almoço com sinais de amizade: “ Com quem eu falo? Como vai, seu Aristeu, tudo bem? Graças a Deus, né? Aqui é do Centro Assistencial Caminho Celeste. Estamos com uma campanha...”. Políticos atacam com discursos: “ Aqui é o Juvenal da Caixa, candidato a deputado. Como vereador, institui a lei que cria o Dia Municipal dos Xerocopistas e das Empregadas Desempregadas pelo Fundo de Garantia. Agora conto com seu voto para continuar lutando...”.
Cada um busca seu tanto. Até clandestinas centrais telefônicas nos alcançam em trapaças e formam verdadeiros chats do crime à distância. Se você pede uma inocente pizza ou dá o CPF ao setor de achados e perdidos, considere-se enquadrado pela sociedade em rede do telemarketing e atendentes automatizados. A cada ligação, o acréscimo de um dado pessoal. Passam a conhecê-lo por estado civil, escolaridade, profissão e renda. Vêem-no por estilo de vida, padrões de comportamento, graus de preferências e poder de compra. Catalogam-no como um “stand alone” – o que se refestela sozinho – ou vive num “ Lar Super Premium”, “ Premium”, “ Emergente” ou “ com Crianças e Adolescentes”. Entram na nossa vida sem constrangimento, protegidos pela impessoalidade sem feições.
Há ofertas de emprego e treinamentos em promoção de vendas e serviços, atendimento ao consumidor, estratégias de negócios, suportes técnicos e telecobrança. Contam com a agilidade da telefonia, capacidade de comunicação e voz agradável, preferencialmente sedutora do futuro operador. Ensinam estratégias de capturação de clientes, identificação e análise de chamadas, recuperação de compradores antigos, caça a doadores e otários em geral. No novo serviço, exercido geralmente em casa, pagam por comissão, capturas e vínculos consolidados ou horas de lábia. Do outro lado da linha, você.
Mas a vítima pode prevenir-se contra os telechatos. São necessárias frieza e capacidade para identificá-los em lapsos de segundo. Quando ligam, você nunca vai ouvir o estridente “ Quem?”, mas, delicadamente, “ Com quem falo?”. Responda convicto: “ Comigo, pô!”. Isto exigirá dele um instante de recuperação do fôlego. E antes que recomponha a metralhadora de verbetes, desligue o telefone com o explícito recado de que a linha não caiu.
Se a operadora de telemarketing já vier armada de seu nome, há opções eficientes e que lhe darão a ilusão de vencedor. Se disser “Boa tarde. Aqui é a Yasmin, como vai, seu Palhares?”, ataque com cinismo, diga que tem problemas auditivos e peça pra que ela repita o nome várias vezes. Após, compassando sílabas, acrescente: “Laurita, você caiu do céu. Estou carente e precisava de companhia. Qual é seu signo?”. Ela o perceberá esperto e, no máximo, vai responder: “A Toycenter agradece a atenção, obrigada”. Se quiser desfecho rápido, diga que é reeducando em prisão domiciliar por estelionato, tem nome sujo na Serasa e o oficial de justiça está à porta por causa da pensão alimentícia. Aí você emenda com jeito conquistador: “Amanda, me dê seu telefone que eu retorno em seguida”.
Porém , se preferir solução um tanto mórbida, diga com entoação trêmula: “Adalgiza, há quanto tempo! E o Agenorzinho, desintoxicou? Nem te digo, prima, D eus não é brasileiro! Com tanto sanguessuga no poder e eu sem recursos pra tratar o inchume na próstata!”. E, sem dó, inocule-a do próprio veneno: “ Que bom que você ligou, seu telefonema é muito importante pra mim!”. Deixe no ar um vazio, no limite da esculhambação. Ela sentirá arrepios, verá estrelas e cairá em nocaute. Depois, desligará com a sensação de que perdera o pulso. Seu nome será riscado de uma base de dados. E esquecido por bom tempo de horríveis telefonadores.
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