ROMILDO SANT'ANNA

E por falar em música sertaneja

Brandino Gomes, aqui do BOM DIA, desancou a música sertaneja e seus intérpretes, tratados como “sertanojos”.  Vieram ressentidas ressalvas de alguns leitores. Antecipo que não afino com esse gênero musical, ainda que lhe aprecie algumas canções. De raízes, prefiro Tião Carreiro e Tom Jobim.  Apenas me intrometo no assunto.

Os sertanejos – não há como negar – falam direto ao coração das pessoas. Quase todos têm um dos pés fincado no mundo da roça. Trazem-no como herança e ancestralidade. Vieram às cidades no êxodo que se deu a partir de 1940.  Somos um país de tradição rural e, naquela época, quase 80% dos brasileiros vivíamos no campo. Hoje é o inverso.  Em conseqüência, o esvaziamento de identidade, a busca de novos símbolos, uma situação de que ninguém tem culpa senão a transformação social e despreparo dos governos. Com a industrialização, nossos pais e avós foram chamados à mão-de-obra barata nas metrópoles.

Os artistas sertanejos teriam semelhante destino.  É incômodo dizer, mas, no fundo, almejaríamos vê-los “no lugar deles”, colhendo laranja, cortando cana, ou dependurados nos andaimes da construção civil. Mas não. Venceram na vida, são ídolos do povo.

Observemos historicamente.  Se, no passado, a audiência das rádios era termômetro do gosto popular, em meados de 50 um sucesso no Brasil era a música mexicana. Já buscávamos, lá fora, um outro modelo, mescla do rural e urbano. São dessa época duplas e trios como Leo Canhoto e Robertinho, e Tibagi, Miltinho e Meirinho que imitavam Miguel Aceves Mejías. Milionário e José Rico com suas rancheiras, polcas, corridos e guarânias seriam a encarnação pitoresca do cowboy do asfalto.  Faziam-se emblemas não de si mesmos, mas de antigos lavradores na brusca cidade. No Trio Parada Dura e em João Mineiro e Marciano entrecruzam-se passado e presente, recordações e sonhos futuros. Formavam, já nos idos de 70, um tosco mosaico da globalização.

Com a expulsão do campo dá-se a ruptura com as tradições. É através do country – o som caipira norte-americano – que emergiriam os sertanejos de hoje.  Em busca de identidade, quer nos EUA ou na velha Europa, ressuscitam outra cavalaria medieval frente à realidade. Não por acaso, são fãs ardorosos de antigos jogos eqüestres, as Festas de Peões.

Caipiras tradicionais seguiram curso semelhante.  Abrindo-se ao hispano-americano, “Boneca Cobiçada” foi sucesso de Palmeira e Biá; “Índia” e “Meu Primeiro Amor” os maiores êxitos de Cascatinha e Inhana; “La Paloma”, a coqueluche de Pedro Bento e Zé da Estrada. Todo esse dilema e transculturação são retratados no filme “A Estrada da Vida”, de Nélson Pereira dos Santos. Narra as desventuras dos “gargantas de ouro”, Milionário e Zé Rico.  São enredos que semelham aos dos sertanejos de hoje, filhos de tantos Franciscos.

A moda caipira “de raiz” é o cântico do haver comum, noção de pertencimento à terra.  A jovem música sertaneja enfeixa simultaneamente resíduos sensíveis dos eitos da roça e a estranha sensação nas metrópoles. Entrelaça-se à telenovela e a tudo o que a mundialização entucha no coração do país. Nela, a vida se resume às ansiedades sentimentais, ao amor que se perdeu. Apaixonada, sintetiza-se num “fio de cabelo comprido, que já esteve grudado em nosso suor”. É saudade do que foi e visão do presente que busca encontrar-se: metáfora de nossas perdas.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
 

 


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