Fitas no futebol é o que mais se vêem. É o atleta que, ao invés de jogar, joga-se na grama em prol do pênalti ludibriado. Sob aplausos, revive um código de obrigações a cumprir, conveniente e convincente. Rindo e balançando a cabeça inconformado, requer indulto da trapaça, consentimento plenário da dissimulação e burla. Fazendo fita toda vez que pode, sacramenta em campo a nova-antiga lei de Gérson que aportou em caravelas. Afora isto, salvo exceções, o jogador em nível de Seleção é um superstar deslumbrado, novo-rico narcisista e fanfarrão, outdoor ambulante, garoto-propaganda em desfrute da fama repentina, hábil, mas desfibrado da paixão. O torcedor, o distintivo, a paixão nacional? Mal necessário. Nascido em arrabaldes, moldado em campinhos de várzea, faz-se encarnação febril da lei de oferta e procura, no pregão do quem dá mais.
Apesar do fascínio que exerce, o futebol nas fitas de cinema brasileiro é tema quase ignorado. Por desinteresse ou talvez porque a trama duma partida se engaste em seus próprios enredos, cada vez mais desconectados com a realidade pulsante e esperançada aqui de fora. Resume em seu tempo e demarcado espaço um falso simulacro da vida. Vida povoada de heróis efêmeros cuja causa se encerra em noventa minutos de jogo; existência resumida a ganhos, empates e derrotas, desigual à sucessão dos talvez que dão sutileza e vigor à graça de existir. Engessada em três possíveis resultados e uma só meta, a torcida bebe essa cachaça no gargalo, sem a agridoce sensação das infindas surpresas. O filme “Pelé Eterno”, de Aníbal Massaini, agora lançado mundialmente, é mais ou menos isto: uma interminável seqüência de gols dissociada do homem biográfico e político. Convalida o gênio da bola recortado em seu teatro de primeiro e segundo atos. Isto é ínfimo em matéria de cinema, no “ país do futebol”.
Há cinebiografias e documentários. “Garrincha, Alegria do Povo”, de Joaquim Pedro de Andrade, enfoca o “ anjo de pernas tortas” ( como o chamou Vinícius num soneto), no auge da carreira. As glórias em campo, pari passu às tragédias da vida, dão à fita uma atmosfera fatalista e comovente. Esse Cartola de nosso futebol, a revelar com graça e singeleza que “as rosas não falam”, volta no recente “Garrincha, o Filme”, inspirado no romance-reportagem “ Estrela Solitária” de Ruy Castro. Não tem a pegada do livro, tampouco se aproxima do documentário cinema-novista.
Em meados de 1960 surge “O Corintiano” de Amácio Mazzaropi. Repetindo o desengonçado Jeca, agora na cidade, traduz em tela a simploriedade da comédia circense. Folclorizando o subdesenvolvimento, mostra o torcedor-caipira como indivíduo precário que acha exótica e engraçada a besteira de seu atraso. Diferente disto, Djalma Limongi Batista realiza, nos inícios de 80, “ Asa Branca – Um Sonho Brasileiro”. Conta o trajeto de um rapaz interiorano que vai tentar a sorte num time da capital. A partir daí, mostra o choque de estranhamento do migrante metido na “ selva de pedra”. “ Por favor, moço, onde fica o centro?” – pergunta o aspirante a jogador, desorientado num viaduto. Desenraizado e estupefato, e lutando por não ser um tragado pela metrópole, o personagem é síntese dos atletas brasileiros: humildes e sonhadores que tentam vencer a selva desportiva. A mensagem de superação das dificuldades, num torneiro de cenas emotivas, é um dos méritos do filme.
Remoçando o drama de Shakespeare, “O Casamento de Romeu e Julieta” é excelente exemplo da interatividade filme e futebol. A tragédia original transforma-se em comédia; a cidade de Verona do século XVI é agora São Paulo; o ódio entre Montecchios e Capuletos, que faz impossível o amor de dois jovens, converte-se na rivalidade entre palmeirenses e corintianos. Hilário sem perder a classe e tecnicamente refinado, o filme de Bruno Barreto reescreve a atualidade shakespeariana e comprova como a imaginação atua no sentido de dar às rixas do futebol uma dimensão densa e emotiva nos enredos de cinema.
“Boleiros – Era Uma Vez o Futebol” e “Boleiros – Vencedores e Vencidos”, de Ugo Giorgetti, são novidades recentes. No primeiro, velhos futebolistas se reúnem num bar relembrando a carreira e fatos inesquecíveis. Emociona pelo tom nostálgico e sensação das glórias perdidas, o esquecimento e ingratidão. No segundo, também costurando pequenas narrativas, remete criticamente ao futebol desfigurado de agora, engolido pelos interesses da mídia e patrocinadores. Refere a atacantes ensaiando bisonhas coreografias e, sem constrangimento, procurando as câmeras para o festejo do gol. Expõe, nas entrelinhas, os meios de manipulação das paixões populares e a redução do futebol ao inebriante “ pão e circo”, na lógica do capitalismo. Põe-nos a refletir sobre uma realidade de jogadores galácticos cuja síntese, em muitos aspectos, afiguram-se na Seleção Brasileira de 2006. Como escrevera Drummond numa crônica a Mané Garrincha, tais atletas não são mais “ irmãos da gente”. Só por estas revelações já valem os incontáveis metros de fitas: ilusão plasmada em celulóides.
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