Nos dias atuais não bastaria o Dilúvio. Desacorçoado com sua criatura estaria nos planos de Deus, fatal e efetivamente, destruir o que fez. Que nada! Sorri de infantilidades e besteiras, pois só ele sabe, nas entrelinhas, os segredos de sua mágica: o mundo e sua gente.
No próximo dia 12, terça-feira, está anunciada outra vez o fim de tudo. Visionários previram hecatombe nos últimos cinco anos, a partir de quando, no 11/9, duas torres de metal arderam em chamas, urraram como Golias e, por fim, se derramaram em sangue e entulhos. Sedimentava no chão, forte e conclusiva, a semente da vingança. Desafiava-se a empáfia armada até os dentes. Em ondas de rancor, quiçá encetadas por W. Bush, a terra viria abaixo destroçada, ouvir-se-iam choros e ranger de dentes. Num lapso, o retorno ao caos original, ao vazio e o nada. Tudo pronto à nova edição, à reconstrução do planeta, um Éden pleno e bonito.
Circula o catastrófico. A data é Marte, terça-feira. Segundo um religioso norte-americano, baseado em numerologia e versículos místicos, um terço da humanidade desaparecerá nesse dia por conflagração nuclear. A guerra entre Israel e Líbano voltará a expandir, inflamará inda mais o Oriente Médio e, por uma detonação acidental na planície de Armageddon, território israelense, a primeira grande explosão. Mais que em outras vezes, o mundo ruborizará em intolerância – afirma o vidente.
Não lhe damos a mínima e o chamamos paranóico. E, não parece, mas à imagem de Deus, ainda cremos no clarear do porvir!
As previsões de fim do mundo se alinham à geometria dos tempos. Inspiram-se na única certeza: o fim individual pela morte. A mais bela expressão desse mito é a fala surrealista do mais surrealista dos apóstolos: João. As visões que narra causaram terror. Hoje, nem tanto. Seu personagem é o Primeiro e o Último, vivo para sempre e ideólogo de tudo. Discorre, num fluxo de pensamento, uma sucessão de imagens distorcidas, de inspiração dionisíaca: “Virei-me para ver a voz que me falava. E vi sete candelabros de ouro. No meio deles estava alguém: parecia um filho do Homem, vestido de longa túnica; no peito, um cinto de ouro; cabelos brancos como lã, como neve; os olhos pareciam uma chama de fogo; os pés eram como bronze no forno cor de brasa; a voz era como um estrondo de águas torrenciais; na mão direita tinha sete estrelas; de sua boca saía uma espada afiada e de dois cortes; seu rosto era como o sol brilhante do meio-dia”.
Não sei se algum gênio da literatura plasmou em palavras tamanha costura de ilusões e fantasias, com tanto brilho envolvendo sonho e realidade, riqueza descritiva e instinto pictórico do mais cavernoso e fantástico barroco. Na peleja entre o bem e o mal, diz que “apareceu no céu uma mulher vestida como o sol, tendo a lua debaixo dos pés, e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz. Apareceu, então, um grande dragão cor de fogo. Tinha sete cabeças e dez chifres. Sobre as cabeças, sete diademas. Com a cauda varria a terça parte das estrelas do céu, jogando-as sobre a terra. Colocou-se diante da mulher, pronto para lhe devorar o filho que nasceria...”.
Instaura-se o quadro que alucina. Na consumação do planeta, a ameaça derradeira. É quando o Criador teria gritado à lástima dos humanos: “Canalhas!”. Tudo desaparece em materialidade e, num teatro do absurdo, a aflição das almas: “O céu e a terra fugiram e não deixaram rastro. Vi então os mortos, grandes e pequenos, ao pé do trono. E foram abertos livros. Foi também aberto outro livro, o livro da vida. Então os mortos foram julgados de acordo com suas condutas em vida. O mar devolveu os mortos que nele estavam. A morte e a morada dos mortos entregaram de volta os seus mortos”. Enfim, os maus seriam jogados num lago de fogo. Eis o juízo final.
O Apocalipse de João é por demais sublime como concepção imaginativa pra perfilar-se ao rés-do-chão da literatura popular. Mas o cronista não resiste e pede indulto por tão brusca conversão de estilos. Sorvemos uns versos do paraibano Pompílio Diniz. Relata na prosódia e linguajar do povo um derradeiro diálogo. É a mulher que destrambelha ao marido seus pecados mundanos. Acreditando no alívio da confissão, murmura: “Ô Romeu, meu Romeuzim! Tu perdoa os erro meu? Já que o mundo tá no fim, vô contá o que aconteceu: Tu sempre pensô que eu era uma muié muito sera, mas foi engano, Romeu! Tu sabe como é os home, eles num presta pra nada! Pois nunca respeita nome, nem aliança de casada... E a gente com sacrifiço vai rejeitando no iniço, mas a insistença é danada! Tu te lembra do Justino? Pois ele foi o primeiro. Depois dele o Belarmino, Honorato Missangueiro, Chico Brabo, Zé do Ganso, Severino, véio Amanso, e seu Mané Sapatero...”.
Planetário, alucinatório ou doméstico, eis o mundão velho de guerra. O sol, teimoso, voltará a nascer. Haveria o 13/9, sorumbático e febril. E ficariam sempre os viventes, por natureza ruidosos, entregues às zombarias de si mesmos. Num ermo desmesurado, o Criador se consola: “Crianças são assim, mas hão de crescer!”. E ri em eterna paciência, na solidão de ser único. |