Quando o Maluf passou uns dias no xilindró declarou que a comida que lhe serviam, denominada “ quentinha”, sequer daria a seu cachorro. Seu lulu deve nutrir-se de uma dieta à la carte, não por preferência gastronômica, mas por status social. No meu tempo, dávamos ao amigo fiel o que sobrava do almoço e jantar. Tudo normal. Desde a antigüidade, domesticados os lobos, partilham conosco a comida de gente.
Há meses, m eu filho onze anos ganhou um amantíssimo mimo, a Fifi, uma poodle marrom, saltitante, inteligente e engraçadinha. Sem querer, tornei-me avô. E como avô atencioso e devotado pai, f ui a um petshop saber das novidades. De cara, levei um kit completo para os cães modernos: casinha, caminha estampada, cobertor, vasilhas, brinquedos e, após cuidadosa pesquisa, sempre acompanhada de orientação veterinária, alguns sacos das indefectíveis rações de cachorro.
Meu choque foi saber que, de uns tempos pra cá, cachorro só come ração. Pensando na adorável Fifi, ponderei: deve ser horrível passar a vida ingerindo só e da mesma comida. A existência perde os prazeres do cheiro e paladar. Relutei em transformar a cachorrinha, tão alegre e brejeira, num frango de granja ou vaca em confinamento. Eles são para o abate; a Fifi, um ente familiar. Onde estão as sociedades protetoras de animais que não enxergam essa ditadura do sensabor e desprazer da vida? Mas me convenceram: mesmo os cachorros de hoje continuam a levar a eterna vida de cão.
A variedade de rações é enorme. Vêm em pacotes ornados de cãezinhos sorridentes, salivando mais que o cachorro do Pavlov. Há tipos balanceados com cálcio, ácidos graxos para uma pele saudável e pêlos brilhantes, farinhas de carnes, farelos, gorduras e óleos, um mix vitamínico e sulfatos ferroso e de manganês. Creio que também existam rações macrobióticas e vegetarianas, segundo opções alimentares do dono. Repassei algumas marcas e considerei salgado o preço de um daqueles pacotes oleosos. Explicaram-me que se trata de um hit super premium, ultra golden, de luxe e sensacionalíssimo. Noutra embalagem de petiscos para filhotes, havia ossinhos coloridos, dificilmente reconhecíveis por cachorros, mas logo identificados pelo comprador. Remetem às caricaturas de ossos nas ilustrações e histórias em quadrinhos.
Rações industrializadas viraram item de compra obrigatória. A moça do petshop argumentou que eu devia levá-las pois refrescam o hálito, evitam o tártaro e melhoram a beleza. Em casa, Fifi olhou-as com antipatia, farejou-as com desprezo. E até agora as detesta. Sentiu-se definitivamente enquadrada. Prefere mesmo é comida de gente, como cachorro à moda antiga e, em último caso, até as “ quentinhas” do Maluf. Indago: que raios de comidas inventaram e das quais cachorro que se preze as abomina?
Em todos os cantos da cidade há um petshop. Recém-formados em veterinária sonham em abrir outro petshop, imprimem cartões de visita e se proclamam doutores em cachorros. Há os delivery, que levam os bichos à maquiagem semanal, e os que atendem com hora marcada, no estabelecimento. Em todos, um arsenal de novidades em comidas, remédios, xampus, coleiras com pedrinhas faiscantes, jóias, agasalhos e brinquedos. Satisfazem a demanda de banhar os cães, tosá-los, tingir-lhes os pêlos, escovar-lhes os dentes, colocando-se nas meninas lacinhos coloridos na fronte que as deixam com as feições repuxadas e, nos meninos, gravatinhas-borboleta que os carimbam com ares ridículos. Para tudo, roupas e adereços, há um tema sazonal: halloween, natal, ano novo, carnaval, festas juninas e dia São Cosme e Damião. Fantasiam-nos sem que saibam o porquê, tornando-os extensões infantilizadas de nós mesmos.
Parece que os cachorros perderam a mítica função de todos os cachorros: existirem como cachorros. Freqüentam escolinhas que os adestram para as necessidades fisiológicas em locais e horas certas, atendem a ordens complicadas, fazem hidroginástica e moldam-se com psicólogos de cães. Ah, se Konrad Lorenz soubesse dessas coisas! Alguns, coitados, são meio sonsos, fora de órbita, estranham a rua e têm saudade do apartamento. Latem amargurados e arredios e, às tardes, estourando de vontade de mijar, desfilam com seus donos, como acessórios ornamentais e humanos do cotidiano moderno. Tudo em consonância com a polidez artificial da vida, e a solidão implacável e perdulária de nossos fúteis anos.
A redenção do mundo canino são os cães ao léu, multirraciais, do povo: o vira-lata. Os enquadrados já não dão piruetas como antigamente, ou urinam de alegria com a chegada do dono. São programados, fichados, escravos dum pedigree. O cão, o santificado cão em muitas sociedades, o cão leal e companheiro, farejador do invisível, adivinho e prestativo intercessor entre nós e o sorrateiro ladrão, o cão já não uiva para a lua ou desaparece com a meia do dono enfiada no sapato. Transformou-se no objeto de nossa fatuidade narcisista, doméstica ou transeunte. Ressabiado de dar-lhe comida de gente, levo à Fifi outro pacote de ração. Ela mira meu filho, abana-lhe o pedaço de rabo que sobrou. E me devolve, desacorçoada, um meigo olhar de desgosto. |