Era uma brochura grampeada na dobra. Na capa fosca e esverdeada, uma menina de tranças sorria pra gente e convidava à ventura das primeiras letras. Com 64 páginas, tinha tamanho pouco maior que as cadernetas que marcavam o fiado no empório, ou os almanaques que nos entretinham em viagens de trem. A autora, nossa heroína, era Benedicta Stahl Sodré, identificada com letras miúdas na capa. Ela e Dona Celina, a primeira professora, parece que adivinhavam a sílaba à frente nas veredas de sentenças complicadas e escuridões da vida. Nossa cartilha alcançou quase 300 edições e multidão de exemplares vendidos, bem baratinhos.
Recordo a primeira lição. Era da pata e, lógico, tinha uma pata branca flutuando no lago. “A pata nada. Pata-pá, nada-ná”, repetíamos em voz alta olhando a figura e letras de professora. Reconhecemos o “p”, o “n” e a primeira vogal, aquela da abelha. Depois vieram o “g” de gato, o “m” dum macaco contente e o “z” de Zazá zanzando em fim de ano. O método de ensino – dizem os pedagogos – era o fônico, que associava as letras e seus desenhos ao som dos vocábulos. Com alegria de aprender, desafiávamos em batalhas gritantes a turma da sala ao lado, bradando em coro: “ Vovô viu a uva! Vovô viu a uva!”. E eles, que aprendiam na Caminho Suave, respondiam ruidosos tropeçando em consoantes: “O rato roeu a roupa do rei de Roma!”. A Suave não era grampeada nem parecia caderneta. Achávamos bonita, maiorzona, com um casal de crianças na estrada apontando com o dedo o futuro. Mas soava meio estranha, talvez porque não a tivéssemos. A criançada da turma de lá, com a qual competíamos também em caligrafia e aritmética, não escondia serena inveja da nossa cartilha, a velha e simplezinha Sodré.
Naquela época, ser analfabeto era comum na cidade. Muita criança de ponta de vila, como nós, nem ia à escola. Mas os que a freqüentavam, às vezes de pé no chão, saíamos lendo, escrevendo e entendendo o que líamos. O boletim não era uma folha fria de computador, mas questão de honra, atestado de que nos havíamos no mundo, com notas azuis e assustadores vermelhos escritos à mão. O material escolar cabia no pequeno bornal dos garotos ou em bolsas de couro geralmente das meninas. E, sem que percebêssemos, já estávamos numa assustadora selva de Ubirajara, ou nos encantávamos com o despertar adolescente de Clarissa, fervendo em nós a puberdade, apaixonados por ela.
Hoje , alfabetização não passa de um percentual estatístico. Não havia o contingente escandaloso dos analfabetos funcionais, que crescem, garatujam nomes em títulos de eleitor, são capazes de soletrar o escrito num cartaz, mas não retêm a mensagem. Li dia desses o comunicado de um garoto bem maior que nós, naquela época: “mae tou na caza do Biau jogando game e vc nao preocupeçe ok?”. E ela, talvez, nem se preocupou.
Discute-se o decepcionante resultado escolar dos pequenos brasileiros. Pesquisa recente informa que menos de 5% dos alunos de 4ª série tiveram desempenho adequado, sabem de fato ler e escrever. Os demais revelam aproveitamento abaixo do que necessitariam para a cidadania e emancipação futura. A nova alfabetização recebe nome pomposo e retórico: construtivista. Nega ênfase à relação sonora entre letras, os desenhos e as palavras, faz da velha cartilha um exemplo tosco de antanho. Prefere que o aprendizado se faça da união entre o cotidiano da criança e as palavras a ele relacionadas. Os livros, luxuosos e caríssimos, a ostentar brilhos superficiais, fazem a festa de editores e livreiros no início de cada ano. Enfeixam boniteza arrogante e transformam filhos e pais em submissos reféns. Algumas escolas, diante de material tão sedutor – e inócuo, parece, segundo os resultados –, usam tais apetrechos pedagógicos como alavancas ornamentais a justificar o alto preço das mensalidades. Quanto ao principal, ensinar a que as crianças aprendam, parece que em alguns casos as escolas se acomodam, culpam implicitamente as crianças, o berço que tiveram ou, talvez, a sociedade com a educação geral em declínio.
Assistimos à degradação da escola pública, determinada pela apatia venal dos dirigentes políticos. Educadores desesperam-se entre salas inconvenientes e salários ultrajantes. À parte, como se fora noutro mundo, por uma criança de 5ª série, em colégio privado, cobra-se por ano letivo mais de 7.500 reais, em treze prestações. Isto porque fomentado por religiosos e entidades sem fins lucrativos. O livro de português custa 57, o de matemática, 64, os de história e geografia, 117, o de ciências, 59, mais caros que um Prêmio Nobel. São tantos e volumosos os arsenais didáticos que necessitam de mochilas com rodas pra que sejam transportados. Tudo como se matérias escolares tivessem valor pelo que pesam, proporcionais em papel-moeda. Chego a pensar que, ao dar-se conta dessa ostentação perdulária no contexto do país, uma criança adquira, inocentemente, as primeiras letras do alfabeto inclemente da segregação social. É assim mesmo – aprendem no sub-reptício – somos a casta privilegiada. A vida é nota zero em solidariedade, e salve-se quem puder! Saudade da velha cartilha enfiada no piquá.
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