Não consigo atinar se o país vai bem. Há uma tendência negativa se o examinarmos na perspectiva das atitudes éticas e exercício de cidadania em nações equiparadas à nossa. Mas são tantos os conflitos e peculiaridades geopolíticas e culturais que inviabilizam comparações. O que se alastra por aqui é desfibramento moral e descrédito nos poderes constituídos. Por vias democráticas, um presidente da República, oriundo da plebe e originalmente ancorado em combativa cepa intelectual, institui programas de salvação dos oprimidos, entregues à fome e miséria de espírito, à base do assistencialismo vicioso e de cabresto. Ao mesmo tempo, em coalizão conservadora, mantém e até aperfeiçoa a engenharia tradicional de apartheid. Penso que o populismo em vigência, regressivo e politiqueiro, e a apologia inescrupulosa à falta de instrução sejam o que de pior poderiam acontecer ao Brasil neste início de século. Ademais, confirma as alegações das forças ideológicas e econômicas que sempre estiveram no comando ou ditando normas de dominação: alguém com o perfil de Lula jamais poderia dar certo.
Invoco alguns pensadores que estabeleceram teorias e interpretações do país. Joaquim Nabuco, em “O Abolicionismo”, imaginava profeticamente que o escravismo não se esgota na abolição, mas fecunda um sistema de idéias e costumes que se projeta na política, na economia e relações humanas. Assim, nosso regime escravocrata foi poderoso alicerce dos desmandos jurídicos que, enfraquecendo o rigor ético e razões humanitárias, fez-se incremento da corrupção e sua conseqüência: a legalidade dos impunes. Esse livro, publicado em 1883, poderia estar na base intelectual de quem se proponha compreender o processo brasileiro e sua realidade.
No vértice das reflexões sobre o país, há quase unanimidade quanto a três ensaios fundamentais de uma geração: “ Casa-grande & Senzala” (1933) de Gilberto Freyre, “ Formação do Brasil Contemporâneo” (1942) de Caio Prado Júnior, e “Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Holanda. Provindos de uma parte do ideário modernista de 22 interagem com obras de escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, tachados “ comunistas” por fazerem emergir no Brasil criaturas, contextos e sentimentos brasileiros. Nessa efervescência estética e idéias sociopolíticas e antropológicas, não se pode esquecer Paulo Prado em “ Retrato do Brasil” e sua tese sobre as três raças tristes – lusos, afros e indígenas. Tampouco, a consciência do messianismo como suporte fundamental das atitudes em “Os Sertões” de Euclides da Cunha.
Dos livros essenciais, talvez “ Casa-grande & Senzala” seja o mais instigante e provocativo. Publicado ao mesmo tempo em que Hitler ascendia ao poder e, com ele, a paranóia racista, Freyre toca na miscigenação étnica como fator positivo de identidade nacional. Fala no “amaciamento” da língua lusitana, por influência africana e que, brasilicamente, “ desmancha na boca”, provocando sem-cerimônia às relações sociais. Mergulha na intimidade da constituição familiar, na lascívia e soberba coronelista e patriarcal. Tais postulados colocam-se na base pensante de autores como Câmara Cascudo (“ Vaqueiros e Cantadores”), Darcy Ribeiro (“O Povo Brasileiro”) e Roberto DaMatta (“ Carnavais, Malandros e Heróis”).
“ Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado mostra como o modelo colonial escravocrata persiste atual e como ainda sobrevivem situações sociais que pareceriam retratos carcomidos de antanho. No momento em que se iniciava brutalmente o êxodo rural, estuda a disparidade entre campo e cidade, os meios de produção moldados por doutrinas arcaicas e como nossas referências se curvam aos ditames estrangeiros.
“Raízes do Brasil” é um libelo interpretativo de identidade. Demonstra como os “ donos do poder” fazem do Estado uma extensão do patriarcalismo autoritário, sedimentando a legalidade ao sabor dos interesses, sem a aura de impessoalidade que deveria reger a relação entre o poder e sociedade. Eliminam, por interesse, as distâncias entre o público e o privado, o tradicional e o moderno. Essa informalidade do aparato de governo prolonga-se na “ ética de quintal” das medidas provisórias, do cumprimento diferenciado da lei, quebrando-se hierarquias, normas e ritos. O equivalente se processa na religiosidade e culto aos santos, que são próximos e entrelaçados à vida terrena, enfim, humanizados.
O “ homem cordial” – na concórdia e discórdia –, como propôs Buarque de Holanda, é traço singular de temperamento. Contabilizamos, decidimos por sentimentos, elegemos emocionalmente os governantes, enfim, agimos e pensamos com o coração. Esse jeito de ser se comprova na linguagem pelo uso de formas afetivas que encurtam distâncias como “ meu Santo Antoninho”, “ meu Jesus Cristinho”, ou no íntimo, simpático e simplório “Lulinha paz e amor”. Tais livros montam-se como um quebra-cabeças. Formulam um cardápio com itens questionadores que indicam caminhos e transformações. Relegá-los por ignorância ou usá-los imoralmente é crime de lesa-pátria. |