ROMILDO SANT'ANNA

Arquitetura da destruição

Sai em DVD o documentário “ Arquitetura da Destruição” do sueco Peter Cohen. Pareceria alucinação ou ficção científica não fosse uma costura de imagens reais, obrigatórias a quem se dispõe a entender a genealogia do nazismo. Do mesmo diretor é o elucidativo “Homo Sapiens 1900”. Põem em tela questões como a eugenia (“boa raça”), na visão nazi-fascista. Tais lucubrações, inda que de passagem, são mostradas no recente “A Queda!”, do alemão Oliver Hirschbiegel. Movidos por desatinada trama, germânicos dos primeiros decênios do século engendraram a “depuração do ser” e “ limpeza do mundo” para a procriação de nova humanidade. Para tanto, dizimação étnica, confiscos, eutanásia e eliminações por envenenamento foram meios a abrir campo a que nascesse a estirpe universal de um super-homem. Ele, com a hipótese de vitória na Segunda Guerra, comandaria a Europa; após, os povos do planeta. Engendra-se a ideologia da usurpação do corpo e espírito pela disseminação da arte e propaganda, ou uma forma chauvinista e desvairada de mobilizar as paixões pela propaganda como arte. Nesses filmes, histerismos e ações megalomaníacas do passado recente põem-nos a meditar sobre hoje.

Todas as artes têm função de serventia. Unindo estética e ciências aplicadas, a arquitetura é a arte útil por excelência. Outra de suas características é reproduzir modelos sociais, tornando-se emblema de povos e épocas. Se pensarmos numa arte para a eternidade, lá estão as descomunais pirâmides de Guizé, exaltando e apontando para os céus o poderio faraônico. A força da dominação bélica instaurou-se na antigüidade romana pela construção de imponentes arcos de triunfos e obeliscos, além de colossais anfiteatros como o Coliseu, plasmando no espaço urbano a arrogância e hegemonia imperial. Entre os gregos antigos, encarnação dos deuses, lá estão seus templos ao rés do chão, na extensão terrena dos viventes. As esplendorosas catedrais góticas e suas torres pontiagudas e flamejantes apontam o infinito, como que almejando atingir o recanto sobrenatural do Deus cristão. No interior dessas edificações de pedra e vitrais policromos, entre pilares sem-fim e arcos transversos, o pecador vê-se apequenado ante a glória e autoridade da Igreja. Ela e sua arquitetura instauravam o elo entre os céus e o destino, nas dimensões misteriosas da vida e da morte.

Adolf Hitler só faltou, na hora suicida, apropriar-se da frase de Nero: “ Que grande artista o mundo vai perder!”. Desde adolescente ansiou ser pintor, compositor de óperas, crítico e curador de arte, publicitário e mecenas. Fazia de seus comícios e desfiles um mega-espetáculo em que ele era o diretor, cenógrafo e ator principal. Afirmava que só compreenderia a ideologia de seu partido, o nacional-socialismo, quem tivesse senso para entender a grandiosidade operística de Wagner. Para esse tirano e seus asseclas, maquinações políticas, urbanísticas, medicinais e artísticas se mesclavam num só desvario. Entre os líderes do 3º Reich, lá estavam os arquitetos a conceber maquetes que encheriam Berlim e grandes cidades de imensos museus e prédios em estilos greco-romanos, renascentistas e neoclássicos, numa mistura de beleza e imponência. Princípios éticos e estéticos se amalgamam numa poderosa liturgia: a dominação sem limites. Citada por Adriana Kurtz, Susan Sontag, em “ Sob o Signo do Soturno”, escreveu que essa concepção estética “glorifica a capitulação, exalta a irracionalidade e torna a morte fascinante”. Esta, em síntese, é a arquitetura da destruição.

O Fühler detestava artes modernas por serem incompatíveis com pressupostos do nacional-socialismo. Eram expressões doentias de artistas desajustados, que levariam à depravação espiritual. Queimava-as em praça pública; torturava e bania esses artistas. Pensava que a reabilitação do classicismo erradicaria a debilidade mental de sua época, numa equivalência mórbida à purificação e limpeza racial com que sonhava. Para tanto, patético, inescrupuloso e esquizofrênico, pensava que os cânones artísticos do passado deveriam relacionar-se em linha direta com domínio bélico, esterilização de deficientes, experimentos genéticos e discriminação étnica.

“ Arquitetura da Destruição”, filme referenciado mundialmente, encerra o olhar frívolo – e, por que não, profético? – de uma concepção delirante que supunha transformar o mundo numa só aldeia. O cerne dessa idéia antecipou o que veio a ser a benfazeja e temível revolução digital de agora, uma “ sociedade em rede” estritamente vigiada, submissa à hegemonia dum império, com ramificações sociopolíticas. Dessa incubadora germinaram crimes contra a humanidade, invasões criminosas, imolações e extermínios em massa que marcaram o século, e nos põe defronte dum presente incrivelmente real em paranóias. Mesmo que abstrata ou virtual, a engrenagem suástica de Hitler movimenta-se com outras caras, formatos e cores. O nazi-fascismo, o stalinismo... sedimentaram alguns pressupostos éticos do capitalismo de agora, sutil, severo, higienizado e, igualmente, perverso. Seu ícone tremula como um símbolo: George W. Bush. O malfadado século 20 não acabou.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.