Pouco se escreve sobre Zé Fortuna. Nem se diria que ele é “ popular”, que hoje indica quinquilharias “ para o povo”. Zé é artista “do povo”. Fazia a primeira voz no dueto com Euclides Fortuna, seu irmão, o Pitangueira. Foi poeta desde pequeno e, por 30 anos, locutor em várias rádios de São Paulo. Entre uma música e outra, lia cartas dos ouvintes. Eram programas intimistas, nostálgicos, madrugadores. Realizavam o elo entre a cidade e os sertões, no mais singelo e eficaz meio de comunicação entre os que se despediram e os que ficaram no campo. Nosso país vivia o momento mais inclemente do êxodo rural.
Zé Fortuna compôs acima de duas mil canções, sozinho ou em pareceria. Assina duas dezenas de peças teatrais, geralmente encenadas em circos-teatros. Vieira, da dupla com Vieirinha, relatou-me que escrevera inúmeras outras peças e as vendia, ou para o repertório de companhias circenses ou especialmente para duplas caipiras, sob encomenda. Com uma produção sensível, técnica e comovente, era escritor, na acepção da palavra, inda que as academias o ignorem.
Suas peças são comédias e melodramas sentimentais, como esta variante de “Romeu e Julieta”. Dois adolescentes, ela filha do fazendeiro e ele peão, fazem uma jura. Se fossem separados, e se um deles se casasse, o que ficasse sozinho poderia se vingar. Trocam entre si dois punhais por testemunhas. Descoberto o namoro, o pai manda surrar o empregado e o expulsa. Anos mais tarde ela é obrigada a esposar o filho dum ricaço. No altar, recebe um presente com um bilhete. Estava escrito em versos: “guarde contigo o punhal da vingança / porque não quero de ti me vingar / seja feliz e esqueça o passado / peço, por Deus, para trás não olhar”. O padre era seu antigo amor. A noiva “pegando firme o punhal da vingança / com desespero em seu peito cravou / enquanto o sino da igreja batia / ali Tereza sem vida tombou”. Essa atmosfera emocional lembra dramas e tragédias rurais de García Lorca, como em “ Bodas de Sangre”. Com envolvente inteligência dramatúrgica, as peças de Zé redimensionam símbolos memorizados da tradição européia por transmissão oral, e exprimem lições de vida e sábios conselhos.
São muitos seus sucessos musicais, pulsando insistentes no afeto do povo. A toada “ Lembrança” revive a sedução do passado, paixão e lirismo que traduzem o sentimentalismo brasileiro. Enuncia-se em forma de indagação a uma saudade: “ Lembrança, por que não foges de mim? / Ajude a arrancar do peito esta dor, / afaste meu pensamento e o teu, / por que vamos reviver este amor?”.
Percebendo a languidez brejeira das guarânias, com letras inacessíveis que misturam o castelhano e o guarani, reescreveu algumas delas, captando o fervor emocional das melodias. E as recolocou em brasileiro. Foi assim com “ Índia”, “Anahi”, “Vai com Deus” e “ Solidão”, nas vozes de Cascatinha e Inhana. “Lejanía”, canção erudita de Herminio Giménez, veio a ser “ Meu Primeiro Amor”. Aproveita do original o sentimento de “ distância”, que equivale à separação pela morte. Elaborada em linhas de 12 sílabas – o verso alexandrino clássico – Zé Fortuna concebe uma das mais queridas e lembradas estrofes da música popular brasileira: “Nesta solidão, sem ter alegria / o que me alivia são meus tristes ais. / São prantos de dor, que dos olhos caem, / é porque bem sei, quem eu tanto amei / não verei jamais”.
“ Índia”, do início dos anos 50, foi cantada por inúmeras duplas caipiras e intérpretes da chamada “ alta cultura” pós-tropicalista como Gal Costa, Fagner e Joana, Caetano Veloso e Maria Bethânia, sempre imitando o dueto Cascatinha e Inhana. Para a melodia do balé sinfônico de José Asunción Flor havia duas letras plasmando a cosmovisão mítica e sublimada dos índios Guarani. A mais conhecida, de Manuel Ortiz Guerrero, assim começa: “India, bella mezcla de diosa y pantera, / doncella desnuda que habita el Guairá, / arisca romanza curvó sus caderas / copiando un recodo de azul Paraná...”. Zé Fortuna a reescreve: “ Índia, seus cabelos nos ombros caídos, / negros como a noite que não tem luar, / seus lábios de rosa para mim sorrindo / e a doce meiguice desse seu olhar. / Índia da pele morena, sua boca pequena eu quero beijar”. Evocando o indianismo de José de Alencar no romance “Iracema”, parece transposição do que foi escrito em prosa para o verso. Iracema, a virgem dos lábios de mel, tem os cabelos negros como a asa da graúna, é elegante como o talhe de palmeira. Repare a similaridade na idealização descritiva, quiçá, da mesma criatura, unindo em séculos distintos dois Josés igualmente inspirados e românticos.
Levando a paixão e o temperamento emotivo pra dentro dos versos, Zé Fortuna morreu esquecido pelas elites. Que eu saiba, nenhum curso de letras o estuda. Sua existência configura a vala que separa o mundo “ dominante e civilizado” das academias e as relações de vida, cultura e espontaneidade da nação. Num país que valorizasse as “Raízes do Brasil”, seria oficialmente celebrado patrimônio nacional. E o foi, e continua sendo, de modo silencioso e apaixonado, no coração do povo (José Fortuna, Itápolis, 1923 – São Paulo, 1983). |