ROMILDO SANT'ANNA
O papelão dos ronaldos

Como onze entre dez brasileiros afirmam entender de futebol, teremos explicações de sobra para o papelão dos ronaldos e outros galácticos no jogo contra a França. Como havia uma junta egrégia de celebridades, que tal olharmos a Seleção em seu entorno e fora dos gramados? No burburinho das provocações antes do jogo, e respondendo a um atleta brasileiro, o goleador Thierry Henry asseverou: “ quando eu era pequeno, ia à escola das 8 às 17 horas e minha mãe não me deixava descer pra jogar; [o problema é que] os brasileiros jogam das 8 às 18 horas”. Errado? Não, totalmente. Em artigo desta semana, e como pano de fundo da derrota, Clóvis Rossi da “ Folha” destacou como os jovens do ensino fundamental e médio apresentam desempenho sofrível, muito abaixo dos parâmetros internacionais. Que nível de instrução teriam nossos craques, em geral oriundos de famílias carentes, excluídos em grotões e periferias metropolitanas? “O brasileiro médio é bem melhor de bola do que na escola”, assinala Rossi. O problema é que bola e escola não são apenas uma rima.

Lembro-me de um personagem completamente idiota de Chico Anísio. Atendia pelo nome de “ Jovem” e tinha como bordão uma frase explicativa que delineava seu retrato: “ Eu sou jovem, mãe!”. Pois bem, imagine esse abilolado no gozo da fama repentina, da bajulação e dos dinheiros? Possui estruturas pra agüentar esse peso? Ou vai fazer da vida um teatro de prazer? No desempenho efêmero do papel de astro, carrega consigo um séquito de oportunistas: agentes, advogados, lobistas, empresários, palpiteiros, patrocinadores, marqueteiros e treinadores pessoais. Tem estofo para enfrentar a nova partida à margem dos estádios, com a mortadela e a lamparina latejantes do passado e o brilho ostentoso do presente?

A diferença ressaltada por Thierry Henry, por preconceituosa que seja, confirma-se em detalhes de compostura que caracterizaram a Seleção Brasileira no torneio mundial. Os treinamentos, sem a privacidade que fomentaria a surpresa das jogadas, eram folguedos ornamentais e narcisistas transmitidos por satélite, decerto reféns de contratos publicitários e ao preço de muito euro. As aparições públicas, um reality-show de egos elefantinos, eram o exibicionismo de jóias, monogramas, toucas e faixas coloridas, marcas de empresas, vaidades e ambições em infindáveis entrevistas e filmes publicitários, assédio de tietes, namoradas e das indefectíveis “marias-chuteiras” – expansivas moçoilas à caça de fama, sonhando com fotos em revistas e projeção no que aqui se denomina “o mundo artístico” das modelos.

A pândega estridente era o diapasão de uma orquestra chula, desafinada e macunaímica, caricatura antropológica do “ herói sem caráter”, da imprevidência e relaxamento de conduta. Ajudava a consolidar o desenho dos tristes e burlescos trópicos. Confundia a representação internacional de uma nação e o que o futebol significa para seu povo, com a permissividade carnavalesca e atrevida. O que se viu foi a reprodução indesculpável e pequeno-burguesa de que no Brasil tudo pode e, no final, dá-se um jeito. Faltaram lideranças conscientes, galhardia, retidão de princípios e compromisso com o país e seu povo.

O que chegou ao estádio de Frankfurt não era um time, mas a contraface de um time: um ajuntamento de individualismos, personalidades egocêntricas, fúteis, ignorantes e deslumbradas. Isto se demarca por um detalhe também anterior ao jogo. Os adversários franceses, elegantes e imbuídos, desceram do ônibus que os levou ao estádio vestidos com sobriedade e rigor simbólico da missão que iriam desempenhar; os nossos jogadores, em camisetas, bermudas e chinelas de dedos, carregavam seus pertences, risonhos e acenando para as câmeras como se estivessem prestes a desembarcar num pagode com cerveja e cavaquinho. Era a singular expressão estética de um terceiro-mundo ridículo, constrangedor, e de uma consciência profissional fuleira, decadente e pé-de-chinelo.

Que faziam a instituição CBF e seus faustos dirigentes? Quem são eles; com que verbas se mantêm? Onde estava a autoridade do técnico, senão um mamulengo das frases de efeito, equiparando-se aos subordinados e fazendo-se igualmente outdoor ambulante e garoto-propaganda? Estaria também comprometido com os contratos milionários das multinacionais envolvidas? É correto autorizar atletas a embalos noturnos em meio ao rito dos treinos e concentrações? O que se pôs em cena na velha Alemanha foi um bando de lumpens, ilusórios fenômenos, vultos perdidos, um esquadrão de ronaldos mirando no espelho de si próprios e não no coletivo. Já vieram derrotados, submissos, em estado colonial de dependência, abraçando com sorriso baço o severo Zidane como que a proclamar à Europa e ao mundo: “ olha aí, ele é sério, tem reputação poderosa e sou amigo dele!”. Patéticas, irrisórias figurinhas expertas em chutes, e que levam um povo à desilusão! Simbolizam a extensão do poder em coração sinistro: a falta de brio e desapreço à sociedade que sedimentam o descaminho da nação. Como é bisonha, inculta e grotesca a majoritária corja que nos representa!

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
 

 


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