Parece razão social de loja de secos e molhados. Mas não. J. Pinto Fernandes é o elemento-surpresa, o inaudito, o que não tinha entrado na história. Vive num poema quase prosaico sobre as surpresas da vida: “ Quadrilha”. Lá está, em “Alguma Poesia”, primeiro livro de Drummond. Nos versos, o objeto de um amor, sucessivamente, é sujeito de outra paixão. Evoca a contradança popularizada em festas juninas, na qual os bailarinos circulam de mão em mão: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. / João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história”. Ele é o intruso que esposou Lili, a que não amava ninguém. E talvez foram felizes.
Indagarias: onde quer chegar o cronista que tanto se impacienta com os políticos? Pois te digo que, apesar do mote, não ia tocar em tema tão pesaroso. Mas já que me incitaste, narro-te, em preâmbulo, uma passagem que vivenciei há anos. Data: 23 de junho. Fui a João Pessoa para a banca de uma tese. Encontrei no aeroporto um deputado local. Puxando prosa, disse-me que estava de saída pra Campina Grande, pois político que não participa da quadrilha sequer se elege vereador. Estranhei-lhe a franqueza até me dar conta de que ia ao maior evento popular do Nordeste, a festa de S. João e sua famosa quadrilha.
Mas deixemos por hora aos governantes suas batatas. Façamo-nos instrutivos. O herói dos heróis da revolução cubana foi um argentino, Che Guevara, fuzilado em terras bolivianas por ordem da CIA. A agência de inteligência gringa, a Argentina e Bolívia são o J. Pinto Fernandes, os que não tinham entrado na história da ilha de Fidel. A canção portenha mais gravada no mundo é “La Cumparcita”, do pianista uruguaio Matos Rodríguez. Ele, o inusitado vizinho, é o J. Pinto Fernandes metido no tango argentino. O fado, triste e fatalista, provém do lundu africano, nasceu no Brasil e banhou-se em nostalgia da terra-mãe dos imigrados portugueses. Somos, brasileiros brancos e negros, frente ao emotivo fado, o surpreendente J. Pinto Fernandes, o que não tinha entrado na história lusitana.
Bailemos enfim no terreiro malcheiroso da política. A população acreditou em Lula e votou em seu passado. Caminho da roça! – exclamamos de esperança. Quem tomou posse não foi o operário eleito, mas J. Pinto Fernandes, o que não tinha entrado na história. Renegou o que fora, vociferando frases simplórias e acertando os rumos. Mas, em 2004, pouco antes da tradicional quadrilha no Arraiá do Torto, surgiu do nada Waldomiro Diniz, subchefe de assuntos parlamentares. Íntimo dos lordes palacianos, foi flagrado negociando propina com empresário de loterias e jogos de azar. Arre!, nem o estro de Drummond poderia supor que tal personagem desencadearia a dança duma quadrilha horripilante, como um parafuso girando e sem fim.
São tantos os J. Pinto Fernandes reencarnados sem “Alguma Poesia”. Um diretor dos Correios indicado pela “ base aliada” foi filmado embolsando gorjeta, merreca de 3 mil reais. Tornou-se o Pinto Fernandes que excitou as tenebrosas fábulas do mensalão. Nesse enredo, que o procurador da República identificou como “ quadrilha”, ninguém presumiria que o tenor Roberto Jefferson, o J. Pinto Fernandes escudeiro de Collor, e a quem Lula lhe confiaria cheques em branco, se tornaria o trombeteiro-mor do planalto central do país. Em pouco, apresentou-se-nos o maestro da quadrilha, Marcos Valério, outro J. Pinto Fernandes oculto à sombra da história. Citou como comparsa Delúbio Soares, o Pinto Fernandes que tramava no escuro. Declarou no Fantástico que os pacotes de dinheiros que dava aos políticos em troca de apoio ao governo eram inocentes cédulas não-contabilizadas de campanha eleitoral. Eufemismo de caixa 2, moeda da sonegação e negócios corruptos, do tráfico de drogas, propinas e velhacarias inocentadas pela legião de desavergonhados J. Pinto Fernandes que não tinham entrado na história.
Veio Silvio Pereira, o J. Pinto em carro de luxo dizendo-se presenteado por fornecedor da Petrobrás. Logo, o J. Pinto Fernandes, irmão genuíno doutro político, que não cabe em nenhuma história que supusesse alguém carregando dólares no bojo da cueca. Muitos funcionários republicanos tiveram a máscara arrancada e se revelaram repetidos clones de J. Pinto Fernandes. O recente, ex-ministro da fazenda, seria o Pinto Fernandes mais extraordinário, se o próprio presidente não viesse a público confessar que desconhecia a ebulição nojenta sob suas barbas.
A oposição, na contradança de angélicos querubins e serafins tucanos e pefelistas, encena o J. Pinto Fernandes da moralidade nacional. Que vergonha! Bem fez Lili, que não amava ninguém e elegeu como companheiro o J. Pinto Fernandes original da poesia. Se casasse com algum de seus arremedos, estaria hoje como nós, perdida, pagando pesados tributos, chorando na rampa e dançando na monotonia da sanfona e da zabumba.
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