O amigo Márcio Colombo é livre-docente em física e apreciador das artes. Falamo-nos esparsamente há muitos anos. Meu assunto com ele, “a procura de Deus”; o seu, física quântica. Os temas não se digladiam, antes, abraçam-se. Por um lado, no rigor surreal dos dogmas científicos; por outro, na exatidão científica de nossos dogmas. Fez-me interessar por física, oásis fronteiriço da filosofia. Penso: Einstein postulou a “relatividade” do espaço-tempo; a mecânica quântica, a “ incerteza” de tantas incógnitas. Assim, damo-nos bem, o escritor e o cientista. Nas relutâncias – que se há de fazer? – sorrimos.
Isaac Newton, o príncipe da ciência, alquímico e místico, apoiava-se em Deus. Suas investigações sobre a decomposição da luz solar conduziram à moderna física óptica. Com isto, entre maravilhas, fizeram-se o cinema, o DVD. Observando o movimento dos objetos, escreveu as leis da gravidade. Com isto, engatamos corcéis siderais que nos fazem ultrapassar o impensado. Na matemática lançou fundamentos para os cálculos das quantidades infinitamente pequenas. Com isto, chegamos aos alicerces biológicos da vida, o DNA, ou ao chip que traduz em flashes eletrônicos as incertezas desta crônica.
Físicos como Newton e descendentes acreditarem em Deus? Ciências exatas... O célebre Einstein investigou campos eletromagnéticos e a velocidade da luz. Chegou à teoria universal da relatividade. Disse numa carta a um brilhante físico: “ Caro Niels Bohr, a mecânica quântica é extremamente importante, mas uma voz dentro de mim me diz que esta teoria não é verdadeira. Ela não nos deixa mais próximos dos segredos do criador. Tenho certeza de que Deus não joga dados.”.
Que voz é essa, que força “ dentro de mim”? Caetano Veloso começa deste modo uma canção: “ quem é ateu, e viu milagres como eu...”. Cê já viu certeza humanista mais incerta? A quântica descreve o comportamento das minúcias por meio de “ interpretações”, aponta a “ probabilidade” do comportamento das partículas. Concebe que a interação que temos com as coisas, modifica-as. Suponhamos. Meu celular mede entre 4 e 5 centímetros de largura, algo próximo de 4,6 cm. Se o mensurarmos com instrumento de maior precisão vamos situá-lo entre 4,6 e 4,7 cm. Se utilizarmos medidor de mais acuidade, chegaremos a 4,64 cm. Com outro, aperfeiçoado, ficaremos em 4,648; com o de última geração, em 4,6489 e, sucessivamente, iríamos a 4,6489317952867... sem nunca chegar ao último número, à exatidão da medida. Sei do meu celular, “interpreto-o”, mas não posso afirmar com rigor qual seria seu tamanho. Eis a científica certeza mais próxima de um número incerto.
Mais um exemplo inspirado em almanaques. Só vejo a cada vez uma face da moeda. Se quero crer que estou realmente em contato com esse dinheiro preciso acreditar, ter fé, no lado que não enxergo. O obscuro e apenas acreditável complementa e dá sentido ao que vejo. E só na angústia desse fato, e comigo mesmo, uma moeda é real. Não seria assim, em nós e no mundo, a sombra inefável de Deus?
Deus , esse ignoto, essa relatividade e singular pulsação perpassa as cruzes do tempo, nos quatro estágios da vida e quatro membros do corpo, nos quatro elementos da natureza e quatro pontos cardeais, nas quatro fases da lua e quatro estações do ano, e o desejo navegando nas estrelas do cruzeiro, lido e relido nos quatro mil evangelistas. Bordando com fios de saber, a ciência tem o papel de responder às questões. E nos auxilia a formular novas perguntas. E, quanto mais indagamos, mais nos põe diante de uma energia absoluta e indecifrável: Deus.
O físico Bernard D’Espagnat, ao postular a “ realidade velada”, afirma que a quântica introduz a não-separabilidade entre observador e coisa observada. Algo assim, como poetizou Luiz de Camões, “transforma-se o amador na cousa amada”. Na intuição do físico, para além dos fenômenos existiria uma realidade última ante a qual a ciência permanece muda. Suplantando o realismo de Einstein, afirma D’Espagnat: “de fato, Deus é que joga os dados”.
Um soneto do argentino Borges enfoca o jogo de xadrez e o aproxima das regras do ser no mundo: “ Tênue rei, oblíquo bispo, encarniçada rainha, torre direita e peão ladino. Sobre o negro e o branco caminho, buscam e livram sua batalha armada. Não sabem que a mão assinalada do jogador governa seu destino. Não sabem que um rigor adamantino sujeita seu alvedrio e sua jornada. Também o jogador é prisioneiro (a sentença é de Omar) de outro tabuleiro, de negras noites e brancos dias. Deus move o jogador, e este a peça. Que Deus atrás de Deus começa a trama de pó e tempo e sonho e agonias?”.
Maravilhosa potência a qual apenas pressentimos! O sagrado amigo Wilson Romano Calil indaga-me com uma equação: Vivemos em média 5 bilhões de segundos; no espaço haveria 5 bilhões de galáxias. Quem somos, nesse sem-fim, senão a irresistível vontade de explicar as pistas que nos expliquem? Eia, o enigma dos naipes, um 11 de Copas, o coração encarnado que pulsa comandando o jogo e ninguém vê. Eia nós, encantados e piegas, no mundo de Deus! |