Após oito anos de hibernação musical, ele está de volta. No intervalo, compôs para outros discos e, em 2003, lançou “Budapeste”. Considerado o melhor romance do ano em Língua Portuguesa, recebeu o Prêmio Jabuti. Traduziram-no em vários idiomas. Participou também de programas-homenagem da DirecTV, convertidos em nove DVDs. Com bons momentos, mas irregulares, estão aquém de Chico, inda que saciem a vontade de senti-lo em pessoa.
A assertiva não é adequada aos preâmbulos, mas não resisto. “ Carioca” é muito bom. Leva-nos ao prazer especial das obras de arte. É refinado, amadurecido e, em recorrência à obra do próprio Chico, supera-a.
O artista declarou certa vez que compõe imaginando o que diria Tom Jobim. “ Quando uma canção fica boa – pensa – parece música de Tom”. Agora que se foi, parece que Chico se comunica com Tom numa dimensão superior. Em “ Carioca”, mediado pelos arranjos de Luiz Cláudio Ramos, Tom é plena e abstrata presença. Por isto, na sinuosidade das canções, ora traspassa a sensibilidade de Villa-Lobos, ora os tradicionais enredos da terra, não faltando o “ auxílio luxuoso do pandeiro”. Juntos, e repercutindo sofisticadas nuanças, o vigor criativo de Edu Lobo. Assim, a concepção estética do disco tangencia o erudito.
Antes de mais nada, “ Carioca” é como apelidavam Chico em São Paulo. Saudosista, alguns momentos são singularmente blues, com sutis inflexões de gaita a rigor, arrodeada de batuques (“Renata Maria”, com Ivan Lins). Outros alembram nostalgicamente o estilo orquestral de Glenn Miller (“ Sempre”). A lúgubre “ Ode aos Ratos” ( com Edu Lobo), imitando as conservadas sinfonias de rabecas nordestinas, tão divulgadas pelo Quinteto Armorial, é um xaxado que evolui numa parlenda embolada e meio rap, sobrepondo vozes e resultando um final arrebatador. “ Bolero Blues” ( com o baixista Jorge Hélder) é a melodia mais em semitons e dissonante, com variações dodecafônicas quiçá inspiradas em Arrigo Barnabé. A polifonia, na maravilha imaginária de uma “ lua cris” ( em eclipse), dá-se pelo dueto com Mônica Salmaso e nos põem em consonância com antigas trilhas de filmes musicais (“Imagina”, com Jobim). Este é o tom exultante e prazeroso, maravilhado e pródigo como Jobim!
As letras parecem poesia de papel, em livro. Há explícitos intercâmbios literários. Tom é a primeiro deles, no samba-canção “ Subúrbio”, em explícita citação às “ Águas de Março”: “perdido em ti, eu ando em roda, / é pau, é pedra, é o fim da linha, / é lenha, é fogo, é foda!”. Noutra faixa, como num jogo intertextual do compositor e sua criação, confessa: “Quando ela mente, não sei se ela deveras sente / o que mente pra mim. / Serei eu meramente / mais um personagem efêmero da sua trama?” (“Ela Faz Cinema”) – remetendo-nos à “Autopsicografia” de Fernando Pessoa.
Em quase todas as canções Chico refere a “ ela”, que pode ser idealização feminina, alguém em pessoa ou a própria canção. Já o fizera em “ Quem te viu, quem te vê”: a personagem transitava entre a sutil evocação à mulher e à música popular brasileira. Em “ Subúrbio”, exorta vocativamente essa ambigüidade: “Vai, faz ouvir os acordes do choro, canção, / traz as cabrochas e a roda-de-samba”. E, enumerando os morros cariocas, seus casebres e sua gente, produz imagens de penetrante realismo poético como “ casas sem cor, ruas de pó, cidade / que não se pinta, que é sem vaidade”, ou “ lá não tem moças douradas expostas, / andam nus pelas quebradas teus exus, / não tem turistas, não sai foto nas revistas, / lá tem Jesus e está de costas”. Por estes versos, já valeriam um disco e seu autor.
O ser sentimental do artista está presente. “ Outros Sonhos” é uma construção em paradoxos: “[sonhei que] guris inertes no chão falavam de astronomia” ou “ doentes do coração dançavam na enfermaria” Tudo um virtuosismo poético para o emotivo desfecho: “e por sonhar o impossível, ai, sonhei que tu me querias”. A alusão ao cinema é outra constante. Refere a “ fazer cena”, “ lembrança de fatos vividos, como num filme” ou a forma de arte que mais semelha o real. Duas canções de um lirismo suave parecem aludir a vivências do artista em passado recente. Na primeira, com atmosfera intimista e seresteira, menciona uma atriz: “ Hoje, lembrando-me dela, / me vendo nos olhos dela, / sei que o que tinha de ser se deu. / Porque era ela, porque era eu.” (“ Porque Era Ela, Porque Era Eu”). Noutra, alembra-se: “ com tantos filmes na minha mente, / é natural que toda atriz, / presentemente represente / muito pra mim.” (“As Atrizes”).
Contudo , como o poeta é o fingidor que finge o que deveras sente, a feminilidade tão matizada em Chico dá-se como reflexo de uma criatura ao espelho, quiçá projeção dele-mesmo na arte de compor. É o artista-em-si a revelar a música como necessidade: “ Ela faz cinema, ela é assim. / Nunca será de ninguém, / porém eu não sei viver sem, e fim.”. O eterno feminino, idealização sublimada da mulher ou da criação, é o ente emotivo e engenhoso que outra vez estimula o autor. E nos faz ouvir: “ eu não sei se ela sabe o que fez / quando fez o meu peito cantar outra vez.”. É Chico Buarque que volta. E encanta.
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