ROMILDO SANT'ANNA
Cantos Num País de Futebol

Ainda são comuns os cartazes nos botecos: “ Proibido discutir religião e futebol”. No primeiro caso, somos a mescla de conflitantes cultos que fazem peculiar nossa relação com o sagrado; no segundo, um ajuntamento de torcedores ancestralmente repartidos em etnias e nacionalidades competitivas e rivais: palmeirenses, lusos, vascaínos... Sustenta-se que Corinthians é religião. Melhor evitar assuntos controversos. São inconciliáveis e se potencializam com a cachaça e o rabo-de-galo que acaloram ânimos.

Música popular e futebol se tangenciam como afetiva respiração de nossa identidade. Nos idos de 40, Benedito Lacerda e Pixinguinha realizaram “ Um a Zero”, chorinho brejeiro com vibrantes subidas e descidas na escala musical, imitando os dribles e lances nervosos duma contenda. O diálogo virtuoso de flauta e saxofone dos autores perfaz, em justa medida, o espectro simbólico de nossa música instrumental. Bebido de paixão à bola, Lamartine Babo de tantos carnavais compôs hinos de famosos clubes cariocas; Lupicínio fez o cântico emocional de seu Grêmio porto-alegrense. Apartado numa mesa, em “ Conversa de Botequim”, um malandro de Noel ordena ao garçom: “Feche a porta da direita com muito cuidado / que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol. / Vá perguntar ao seu freguês do lado / qual foi o resultado do futebol”. São retalhos de vivências, temperos éticos e estéticos, emblemas multiculturais que fazem do brasil, Brasil.

No futebol, regras definem aspectos duma partida e conduta dos atletas. Uma delas disciplina as substituições e inclusões de jogadores em cancha. Adaptando ao jogo da vida, Toquinho e Vinícius conceberam “ Regra Três”. Alude a alguém que trai freqüentemente seu amor até que ele próprio é o substituído: “Tantas você fez que ela cansou porque você, rapaz, / abusou da regra três, onde menos vale mais. / Da primeira vez ela chorou, mas resolveu ficar. / É que os momentos felizes tinham deixado raízes no seu penar. / Depois perdeu a esperança porque o perdão também cansa de perdoar”. Se, de um lado, há inspiradas formas lírico-sentimentais, de outro, alusões jocosas ao jogo de bola. Com sotaque ítalo-paulistano dos Demônios da Garoa, o samba “ Time Perna de Pau” de Vicente Amar constata: “ Assim, o nosso time de futebol vai mal, / nossos jogador são tudo uns perna de pau! / Só contratemos quem num sabe nem chutá. / Parecemos mulher de malandro, só sabemos apanhá”.

O retrato da “ guerra conjugal”, no estilo suburbano de Dálton Trevisan, impõe-se em “ Incompatibilidade de Gênios” de João Bosco e Aldir Blanc. Argumenta um torcedor ao advogado, justificando o pedido de divórcio: “Dotô, jogava o Flamengo e eu queria escutar, / chegou, mudou de estação, começou a cantar”. Noutra canção dos compositores, as vias de fato e fim do casamento comparam-se à sensação de vazio de um “ Gol Anulado”: “ Quando você gritou ‘Mengo’, no segundo gol do Zico / tirei sem pensar o cinto e bati até cansar... / Daquele gol até hoje o meu rádio está desligado / como se irradiasse o silêncio do amor terminado”.

O futebol inspirou formas criativas de cartas musicais. “ Meio de Campo” de Gilberto Gil é uma delas. Compara esse esporte às dificuldades da vida: “ Prezado amigo Afonsinho, eu continuo aqui mesmo, / aperfeiçoando o imperfeito, / dando um tempo, dando um jeito / desprezando a perfeição. / Que a perfeição é uma meta / defendida pelo goleiro / que joga na Seleção. / E eu não sou Pelé, nem nada. / Se muito for, sou um Tostão. / Fazer um gol nessa partida / não é fácil, meu irmão!”. Chico Buarque escreve ao “Ilmo. Sr. Ciro Monteiro”, que teria mandado à sua filha uma camisa do Flamengo. Diz-lhe: “ Mas, caro nego, um pano rubro-negro / é presente de Grego, não de um bom irmão. / Nós separados nas arquibancadas / temos sido tão chegados na desolação”. E, n um imaginoso lance poético, transforma-a em camisa fluminense: “ Mas quis o verde que te quero verde / é bom pra quem vai ter de ser bom sofredor. / Pintei de branco seu preto, ficando completo o jogo de cor / e virei-lhe o listrado do peito / e nasceu desse jeito uma outra tricolor.”.

O futebol como arrebatador teatro das catarses coletivas aparece inscrito em “ Fio Maravilha” de Jorge Ben. Nela, um delicado registro da psicologia de massa na vertente de ternura. Sacralizando o jogo, um atleta entra em campo “ com inspiração”, “ com muito amor”, “ com emoção”, faz “ jogada celestial” e marca um “ gol de anjo”. O final é um grito de passionalidade, voz de súplica e confraternização, como se a ida ao estádio fosse refúgio e, ao mesmo tempo, escape das desilusões cotidianas. Arrefece-se a dureza machista e uma voz plenária instaura um grito único e brasileiro: “Foi um verdadeiro gol de placa / que a galera agradecida assim cantava: / Fio Maravilha, nós gostamos de você! / Fio Maravilha, faz mais um pra gente ver!”. Grito de machos que, nas arquibancadas, despem-se da máscara e fundam uma doce e singela confidência. Esta canção é um tratado psicossocial que só a música, o futebol e o futebol na música possibilitam. Abre-se para que se cante a alma de um povo sofrido, que tem a ilusão de nunca perder por viver contente.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
 

 


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