Caetano é autobiografia. Não finge a dor que deveras sente. Contraria em pessoa Fernando Pessoa e, ao mesmo tempo, o revive. Personagem de si, contempla-o ao pé do infinito (“ gosto muito de você, leãozinho, de te ver entrar no mar...”) ou num close ensimesmado (“ ficar perto de você e entrar numa”). É espelho refletindo incongruências: “ onde queres romance, rock’n’roll”, “ onde queres Leblon, sou Pernambuco”, “ onde queres comício, flipper-vídeo”. Desde os idos da tropicália, traduz e conjuga o exclusivo neologismo “caetanear”.
Há tempos não lançava um disco com músicas só suas. Nem precisava. Bastava o dom de soletrar a poesia de outros, acrescentando, em muitas, o toque final de grande artista. Foi com esse viço que atiçou a exclamação de um personagem de Almodóvar: “Caetano é o máximo!”. Hoje, em tempos de “ Lula Light”, apresenta-nos “ Cê”. No rap “O Herói”, confessa que “ sempre quis tudo o que desmente esse país encardido”. E, no paradoxo libertário entre “ meu Guevara e minha coca-cola”, constata: “ eu sou o herói, só Deus e eu sabemos como dói”. Mas.
Se se imagina um disco sisudo, engana-se. “ Cê” é o mais arejado, peremptório e ao mesmo tempo “ jovem” que tudo quanto o artista produziu ou ouvimos de outros nos últimos tempos. É música densa, poética e exuberante, lembrando às vezes Bob Dylan e George Harrison. “ Musa Híbrida” é guitarra repicada em tamborins, pleno vigor dos fundamentos modernistas nos dias de hoje. Aos 64 anos, apresenta-se como “O Outro”: “ você nem vai me reconhecer / quando eu passar por você / de cara alegre e cruel / feliz e mau como um pau duro”. Essa canção tem como endereço os entulhos de um casamento. Leoninamente, provoca a ex-mulher: “ cascavel eriçada na moita / concentrada e afoita!”. Noutra faixa, vai à desforra atirando pedras [de gelo]: “tatuou um ganesh na coxa / chegou com a boca roxa de botox / exigindo rocks” (“Rocks”). Emenda com desfaçatez e ironia que “ tu é gênia, gata, etc.” e completa, jovial e repetidamente: “ você foi mó rata comigo!”. Porém, conciliador e romântico, pensa nos filhos: “ nada irá nesse mundo / apagar o desenho que temos aqui / vejo essas novas pessoas / que nós engendramos em nós e de nós” (“ Não Me Arrependo”).
Caetano rejuvenescido apresenta-se como folha em branco, o Veloso em botão. Seu laboratório é a mediação interiorizada do mundo, às vezes agônica e saudosista, e sempre atual. Engendra frases que valem mais como esboços significativos que a soma das palavras e requintes sonoros: “o tapete cor de poeira de dentro do avião / a lembrança do branco de uma página / nada serve de chão / onde caiam as minhas lágrimas”.
Em grande parte, é corpóreo e sexual, cru e nu, redescobridor e tesudo. É acuidade e liberdade sessentona: “ mucosa roxa, peito cor de rola”, “ seu queixo, seu pêlo, sua coxa, seu cheiro”, “ mamilos de rosa-fagulha”, “ fios de ouro-velho na nuca”, “ orgasmos múltiplos”. Sintetiza-se num verso: “tua pele se espalha ao som da minha mão”. Convida-nos à fruição fazendo requebros com língua lusitana: “estou-me a vir / e tu como é que te tens por dentro? / por que não te vens também?” (“Por quê?”). Desafiador, oferta-se à flor da pele, por inteiro e recém-nascido.
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