Há muito quis ler “Os Jornalistas” de Honoré de Balzac (1799-1850). Sai agora, numa simpática tiragem da Ediouro. Tem que ser relativizado às primeiras décadas de mil oitocentos, tempo em que balzaquianas sequer sonhavam que, hoje, estariam joviais e esbanjantes. Jornais franceses dedicavam-se à política e às artes. No Brasil colonial, até 1808, publicações jornalísticas eram proibidas, sequer permitiam as impressoras. A surpresa, ainda que nem tanta, é encontrar no velho e longo ensaio do escritor dados e observações que sempre tocam na nossa atualidade. Sarcástico, investe contra a arrogância e vaidade de certos jornais e jornalistas. Reproduzo idéias esparsas no livro, e até frases inteiras sem as devidas aspas, com a intenção de parafraseá-lo.
Balzac escreveu compulsivamente em luta por sobrevivência, sempre assediado por credores. Foi jornalista e tentou ser editor, mas naufragou. O ressentimento talvez seja o mote inconfesso de seu livro. Porém, lendo-o, ressalta o crivo do artista, agudo observador do comportamento humano. Como romancista, foi precursor do realismo e embrião das modernas ciências sociais. Sua grandiosa “ Comédia Humana” é monumento erguido com palavras. “Os Jornalistas”, não fosse um ensaio, bem que poderia fazer parte dessa Comédia que extravasa os tempos. É obra panfletária? Talvez. Mas Balzac mete seu dedo: “o verdadeiro panfleto é obra do mais alto talento, se todavia não for o grito do gênio”.
Com estilete, tinta e sarcasmo, traça um painel de vários tipos de jornalistas e jornais. Enquadra-os numa França em cujo sistema político o benefício pessoal domina o interesse público. Fala do “jesuitismo” aparente de certos redatores, parasitas cutâneos da sociedade. Seguindo os passos flutuantes do momento, são homens que aprendem algo na véspera e o cospem no dia seguinte como vivazes senhores de idéias. Possuem amigos que lhes cantam contínuos hosanas e, encenando imparcialidade, aproximam-se de todos os partidos. Onipresentes, fazem um carnaval que começa em 2 de janeiro e só termina na S. Silvestre. Altissonantes, ocupam-se do mundo sem que o mundo se ocupe deles. Quanto aos jovens, observa que muitos só vêem prazer no mal; são advogados sem causa que ganham causas sem advogados. Mas acabam tristes, solitários, como estátuas ao redor duma igreja.
Sobre o “diretores-redatores-em-chefe-proprietários-gerentes” de certos jornais, Balzac é inda mais contundente. Afirma que eles podem empurrar um livro, um caso ou um homem, e podem às vezes arruinar o homem, o caso ou o livro, segundo interesses e conveniências. Fazem de seu jornal emblema de ambição. Defendem o sistema político cujo triunfo os interessa, tornando-se respeitados pelo temor que despertam. Assim, vêem no jornalismo uma aplicação de capitais cujos juros lhes são pagos em influências, prazeres, dinheiros e cargos públicos. Por isto, escondendo as aparências, estão ao lado do poder. Porém, quando aliados às oposições, têm consciência de que estas são bastante boas em tomar vivamente para si os interesses da sociedade, sem que a sociedade os escute ou lhes preste atenção.
Em Balzac, sem floreios, os signos dilaceram. Parece referir aos impolutos cidadãos Kane do mundo, e que furtivamente estão aí. Mas, especialmente, desanca escarnecimento aos críticos de arte, muitos dos quais ele foi vítima. Afirma que o crítico é um autor impotente que, não podendo criar nada, vazio de talento, julga a torto e a direito. Ignorando pequenas obras que não lhe dão prestígio, pega o chicote para fustigar as grandes, querendo ser, ele próprio, mais interessante que os artistas que critica. É sua forma de ostentar importância, ancorando-se no alheio. Um axioma de Balzac revela sectário desprezo: “a crítica só serve para uma única coisa: fazer viver o crítico”. Ela é uma esquartejadora autoritária de obras e só se desfaz da ira quando se lhe aproxima uma bolsa aberta. Neste ponto, embainha a navalha ou pena venenosa. E alia-se, acalma-se.
Observando que os franceses têm profundo respeito por tudo o que é tedioso, fustiga uma categoria de jornalistas que denomina como os “nadólogos”, quer dizer, cronistas e articulistas que falam sobre tudo e nada dizem. Emanam um ar de superioridade, promovem gracejos, rompantes eruditos e gritarias impressas. Vez por outra, são espirituosos, divertidos e proféticos, fingindo espontaneidade. Confusos, constroem raciocínios e imagens que passam mil pés acima das cabeças que os lêem. Os “nadólogos” seriam parasitas embusteiros, interessados no sucesso efêmero, em eterno flerte com o nada.
Detalhes de “Os Jornalistas” revelam-lhe o primor como linguagem. Como o seguinte, a definir o que se considera a “ linha editorial” de certas publicações. Alegoricamente, expõe por que a mesma notícia sai diferentemente em cada jornal. Escreve: “ Assistir a uma sessão musical é ter ouvido uma sinfonia. Ler as sessões em todos os jornais é ouvir separadamente a parte de cada instrumento”. Desafia o raciocínio, convida à reflexão. Balzac, sempre, é um privilégio.
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